A paz entre ladrões só pode vir de dentro para fora
Aqueles criminosos conheciam e se fizeram ser respeitados nas comunidades em que estavam inseridos: nas carceragens, nas comunidades periféricas e no mundo do crime.
Assim, um modo específico de gestão do uso da violência nas interações entre a polícia e o crime é estabelecido. Não existe agressão física, tampouco troca de tiros ou enfrentamento, mas um conflito ‘contido’ inserido numa esfera de interação discursiva voltada ao alcance de acordos financeiros.
Indaiatuba SP: um exemplo prático da paz entre ladrões
Edgar Allan Poe ensinava que existia uma forma correta para se açoitar uma criança: devia ser da esquerda para a direita.
O escritor explica a razão:
Todas as pancadas devem ser na mesma direção para lançar para fora os erros, mas cada pancada na direção oposta, soca para dentro os erros.
Talvez ele tenha razão.
Apesar das surras impostas pela sociedade, o tráfico de drogas e o crime se mantêm fortes e robustos.
Passamos pelo Regime Militar e pela Redemocratização e, com lágrimas nos olhos, vejo que não há mais esperança para o problema: falhamos.
Açoitamos a criança em todos os sentidos, e não em uma única direção como Allan Poe orientou.
E em rebento crescido não haverá açoite que possa ser dado pelo sistema policial e jurídico que surta qualquer efeito, o mal feito está feito.
Só nos cabe abaixar a cabeça e apreciar a divisão dos despojos entre os criminosos que se organizaram e se fortaleceram sob nossos próprios açoites.
continua após o mapa…
Diálogo entre ladrões: assim fundiona a paz entre ladrões
Esse diálogo trocado sobre um conflito no Morada do Sol demonstra como a organização criminosa gere os conflitos de maneira natural e com profundo conhecimento:
Edson Rogério França, o “Irmão Cara de Bola”, “Torre” da organização criminosa em Indaiatuba conversa com Willian do bairro Morada do Sol.
Willian Neves dos Santos Vieira, o “Irmão Sinistro”, é soldado da facção criminosa e morador da rua Custódio Cândido Carneiro no bairro:
— O espaço que tem lá na rua 59 é bom, é meu e do Mateus, tá ligado irmão? O irmão Matheus, conhece o Matheus? — pergunta Sinistro.
— Não, não conheci. Você fala o do trailer?
— Não irmão, lá embaixo na 59, lá embaixo, no trailer é o Marcelo, é outro menino, inclusive ele pega mercadoria de ti. — explica Sinistro.
— Não, de mim não. — se defende Cara de Bola.
— O sol brilha para todos, tenho este espaço lá há mais de treze anos. Agora, um menino meu estava precisando de uma força e eu ajeitei um canto para ele fazer a caminhada, e o Cláudio agora está ameaçando matar a mulher dele. Pô, o Cláudio é prá cá, eu sou mais prá lá, pro fundão, sou lá do lado da rua 80 e da rua 78. Já o TG do CECAP é firmeza.
Tribunal do Crime do PCC – o mediador aceito
Eu não conheço o Cláudio, portanto eu não posso afirmar que ele tenha sido açoitado quando criança do lado certo ou errado.
O que sei é que ele também negocia as drogas do Primeiro Comando da Capital e, portanto, deve ter tido as mesmas aulas que os outros criminosos.
Cláudio teve que prestar contas de sua atitude. Ele já estava sem saber em análise por suas atitudes.
Outro dia ele foi mostrar uma pedra de crack para Keiti Luis Von Ah Toyama, o “Irmão Japa”, mas este não gostou, disse que era um pouco melada.
Cláudio explicou que é a mesma que não é a da boa, é da comercial, a mesma que vende em suas lojas:
— Se quer quer, se não quer não quer, é R $10,50 a grama, é pegar ou largar.
Seja como for, as crianças cresceram e aprenderam a brincar sozinhas, agora não adianta mais bater do lado certo e nem reclamar o leite derramado.
Cláudio foi julgado por quem obteve o direito de impor as regras naquele local aproveitando a omissão do Estado.
O Primeiro Comando da Capital teria julgado Bruno Marabel no Tribunal do Crime da facção PCC 1533 e o teria sentenciado à morte o jovem que matou em 2020 sua mãe e seu padrasto, a mulher com que com ele vivia e seus dois filhos de 6 e 4 anos.
El caso de Bruno Marabel “la casa del horror de Paraguay” | Criminalista Nocturno
Por ter sido torturado por agentes carcerários em na Penitenciária Nacional de Tacumbú, Bruno foi transferido para Centro de Rehabilitación Social (Cereso) de Itapúa onde teria sido alertado que sua vida estaria em risco. Devido a natureza de seus crimes, a organização criminosa PCC teria decidido que o jovem deveria morrer. Transferido novamente, agora para a Penitenciaría Regional de Concepción.
Embora a facção Primeiro Comando da Capital proíba agiotagem, há um caso conhecido de um agiota que financiava ações dentro da organização criminosa paulista.
Financiando as ações da facção PCC 1533
Se existem agiotas dentro do Primeiro Comando da Capital, como eu nunca conheci nenhum?
Essa dúvida me surgiu enquanto o senhor Joaquim Maria me contava detalhes de uma história que eu conhecia de passagem:
A história do Capitão, homem responsável por parte do paiol do 19 e que financiava operações de quadrilhas de integrantes da facção PCC 1533, no Brasil e no exterior.
Meu encontro com Joaquim Maria no Boa Vista
Eu acompanhava um conhecido que foi entregar um pacote para o “patrão das biqueiras” do Boa Vista, e, enquanto aguardávamos no bar na entrada do bairro ao lado da loja de rações, Joaquim Maria se assentou na mureta para conversar conosco…
… e foi assim que consegui os detalhes da história do Capitão e daqueles que lhe eram próximos.
Não negarei o inegável: que eles pertenciam ao mundo do crime e que foi graças ao lado errado da vida que conseguiram concretizar o sonho dosque moram nas periferias:
Normalmente eu altero os nomes dos envolvidos, seja por uma questão de discrição ou para evitar algum processo, mas nessa história há muitos personagens que são de conhecimento público, então optei grafar os nomes reais:
José de Meneses (Mene), Eulália (Lia), (Capitão) Nogueira e Cristiana.
Eles acabaram sendo conhecidos não por pertencerem à facção Primeiro Comando da Capital, mas, sim, pelos laços de amor e amizade que os uniam, e por essa razão é que achei que valeria a pena vir contar a você o que aconteceu com eles.
Nem todos os PCCs agem e vivem da mesma forma e nos mesmos ambientes.
Esses quatro são um exemplo; é falacioso o estereótipo construído em torno de quem são os membros da Família 1533, como você mesmo pode ter constatado se conheceu Mene, Lia, Capitãoe Cristiana.
É fato que eles, assim como todos nós, relativizavam as regras sociais, mas não eram más pessoas.
De certa forma vivemos todos no mundo do crime, aceitando com naturalidade a quebra de normas sociais que nos são impostas e nos desagradam – algo normal para você, talvez seja deplorável para outro.
A morte de um trabalhador com oitenta tiros, disparados por soldados do exército enquanto ele seguia com sua família para um chá de bebê, pode ser vista como um crime bárbaro, consequência de discursos políticos populistas, ou um incidente no qual “o exército não matou ninguém”.
Tudo é relativo; o injusto pode passar a ser o justo ou ao menos aceitável, o importante é haver uma justificativa de autorredenção de nossos pecados:
utilizar o celular dirigindo (só por um minutinho);
dirigir alcoolizado (eu estou bem e vou dirigir com cuidado);
comercializar drogas (se eu não vender, alguém venderá, é a lei do mercado);
deixar de declarar renda ao governo (o brasileiro já paga impostos demais);
assaltar bancos ou desviar dinheiro público (roubar dos ricos ou do governo) etc.
Os quatro, assim como nós mesmos, nos encaixamos em uma ou outra infração e condenamos sem perdão os outros grupos. Contudo, vim aqui para falar sobre a vida de Capitão Nogueira, e não sobre a minha, a sua ou a do presidente Bolsonaro. Voltemos ao assunto…
Amar e trabalhar na facção pcc 1533
Crescendo no seio da Família 1533
Apesar dos crimes que cometeram, eles se viam como boas pessoas, que apenas não aceitavam alguns valores que lhe eram impostos por uma sociedade injusta e desigual, e acreditavam ser seu direito correr atrás do prejuízo.
Eu afirmo isso por conhecer muita gente como o Capitãoe seus amigos, mas o filósofo, sociólogo e jurista italiano Alessandro Baratta, que não os conhece, afirma basicamente a mesma coisa, só que em palavras mais pomposas:
Menee Liatinham quinze anos quando seus pais se mudaram, com a diferença de apenas alguns dias, para o Boa Vista, vizinhos de onde morava Cristiana, que era nascida no bairro e tinha a mesma idade que eles.
Houve algo mágico entre Liae Cristiana, enquanto a mudança descia do caminhão, Cris se ofereceu para ajudar, e naquele momento se tornaram mais que amigas, se tornaram irmãs. Com Menefoi igual, chegou e se interessou por Lia e nunca a trocou por nenhuma outra.
Menee Liaconheceram a adolescência e o amor ao mesmo tempo que as drogas e o lado errado da vida, pois Cristiana era a filha do dono de uma biqueira, e era ela quem ia levar a droga para os vaporzinhos que ficavam nas ruas próximas à casa.
Cristiana era uma garota fantástica, alegre, muito boa de conversa e superinteligente. Menee Liasabiam que tinham sorte de tê-la como amiga, e foi ela quem ajeitou com seu pai para deixar com os dois algumas porções para venderem enquanto namoravam no parque.
Menee Liasempre chegavam juntos e saíam juntos da escola, do parque e das festas, só se separando enquanto Lia ia até a casa de Cristiana para pegar mais mercadoria para vender, ou quando Meneera chamado para fazer alguns corresmais pesados.
Mene da facção PCC cai pela primeira vez
Conhecendo e fazendo negócios com o Capitão
Menenem tinha ainda completado seus dezesseis anos e já estava com uma moto, só não estava em seu nome, mas era dele, paga com a venda de drogas no parque e como piloto em assaltos e distribuição de drogas.
Poucos meses depois de acabar de pagar a moto, deu fuga nas ROCAMs (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) de São Roque à Araçariguama, mas foi pego quando acabou a gasolina, e a família teve que ir buscá-lo no Conselho Tutelar – não ficou preso, mas perdeu sua moto.
De volta para casa, os amigos apresentaram a ele o Capitão.
O jovem já tinha ouvido falar do Capitão, mas como este nunca aparecia na quebrada,Mene nunca tinha visto o ex-capitão da PM. O oficial expulso da corporação também já ouvira falar que Meneera firmeza nas responsase por isso o chamou para conversar.
Uma proposta foi feita pelo homem e aceita pelo rapaz, que saiu do encontro com uma moto muito melhor que a anterior. A partir daí, passou a fazer serviços para o Capitãoquando era chamado, e, apesar da diferença de idade, se tornaram amigos.
Deixando a quebrada
Todo mundo invejava Menee Lia
Após ser capturado pela polícia pela primeira e última vez em sua vida, Menedecidiu que não queria que Liacontinuasse nessa vida, mas ambos continuaram no tráfico até que ele foi engajado para o serviço militar obrigatório.
No dia em que Meneentrou no quartel, Liadeixou a venda de drogas para nunca mais voltar. No dia em que Menedeu baixa do quartel, foi buscá-la na casa dos pais, casaram-se e foram morar em um bairro de classe média em Indaiatuba.
Meneresolve que é chegada a hora de mudar o futuro seu e de sua mulher
Ele não queria mais que ela se envolvesse com o mundo do crime, então deixaram o passado e cortaram os laços que os ligavam ao Boa Vista. Desde então ela não mais teve nenhuma ligação com o lado errado da vida, apenas ele se manteve nos negócios.
Mene,que sempre foi conceituado dentro da facção, viu que seu tempo no quartel foi bem aproveitado, pois a destreza e o conhecimento na manutenção e na operação de armamentos longos lhe permitiu ganhar ainda mais dinheiro.
Desde que se mudou para Indaiá, ele só participava de assaltos em várias partes do país, transportava armamentos das fronteiras para São Paulo e dava instrução de tiro e manutenção de armas longas para os membros da organização.
A mulher do Capitão
É possível amar um homem com o dobro de sua idade?
Uma década se passou nessa nova vida e o casal Menee Liacontinuava apaixonado, como José Maria relatou-me no seu jeito de falar:
O casal teve uma única filha, Ana Sophia, e no dia do aniversário de dez anos da menina parou um automóvel de alto padrão em frente à residência, do qual saltam duas pessoas que foram tão importantes no passado do casal: Capitãoe Cristiana.
Tudo mudou após a mudança de Menee Lia
Pouco tempo depois que os jovensdeixaram o Boa Vista, os pais de Cristiana morreram em um acidente de automóvel e ela, tendo ficado sozinha, acabou indo morar com o Capitão, que a acolheu como se fosse sua filha.
A convivência porém os aproximou de outra maneira, e eles acabaram se casando alguns anos depois, mas, não sejamos hipócritas, a jovem Cristiana nunca esteve realmente apaixonada pelo velho ex-militar.
José Maria com seu jeito professoral de balcão de bar me descreveu assim esse relacionamento:
Qual a surpresa e a felicidade de Menee Liaquando ficaram sabendo que Capitãoe Cristiana estavam chegando para ficar – procuravam um recanto para se aquietarem.
Menee Lia insistiram que ficassem em sua casa, havia quartos de sobra, mas Capitão,que prezava por sua privacidade, já escolhera uma casa em um luxuoso condomínio próximo dali.
Capitãoresolve que é chegada a hora de mudar o futuro seu e de sua mulher
Desde a morte de seus pais, Cristiana não atuava mais nos corres nas ruas, passando a gerenciar os negócios do Capitão e os que lavavam o dinheiro da organização criminosa: lava-jatos, postos de gasolina, uma rede de pizzarias e uma franquia de buffet infantil.
O Capitão continuava com o paiol da facção, o financiamento das quadrilhas, e só para sentir a adrenalina fluindo em seu sangue ia na linha de frente nas grandes operações de ataques a sedes de transportadoras de valores e a pilhagem de pequenas cidades.
No entanto, Capitãoe Cristiana durante uma viagem pela Europa resolveram que mudariam de vida, assim como no passado o fizeram Menee Lia, e trataram de se ancorar nos arredores Indaiatuba, porque lá já viviam seus grandes amigos do passado.
E assim o fizeram. Capitão desmontou seu esquema criminoso, ficando apenas com o financiamento de ações de quadrilhas ligadas ao Primeiro Comando da Capital.
O certo pelo certo os juros não serão cobrados
O certo pelo certo, os juros não serão cobrados
Assim como Capitão, Meneabandona todas as suas outras ações criminosas para trabalhar exclusivamente no transporte de valores e na cobrança de dívidas para seu velho amigo.
No início essa operação seguia tranquila e o lucro para ambos superava o que ganhavam no tráfico e nos assaltos, mas a cobrança de juros em empréstimos foi proibida dentro da facção Primeiro Comando da Capital – o que afetou o lucro da dupla.
Pela novas regras do crime organizado, o financiador das operações podia acertar receber parte do butim conseguido pela quadrilha nas ações, mas não podia cobrar pelo uso do dinheiro em si como se fosse um empréstimo a juros.
Mesmo assim, financiamento de assaltos, da importação e exportação de grandes quantidades de drogas garantiam um lucro enorme, mas quando as operações falhavam a obrigação de pagar continuava com o devedor, que não podia ser extorquido com a cobrança de juros.
Essa é uma das regras do “certo pelo certo e o errado será cobrado”, que foi incorporada para impedir que as famílias dos encarcerados fossem extorquidas por dívidas contraídas pelos cativos, ou que esses, ao sair, tivessem nas costas uma dívida impagável.
No entanto, era no degradé existente entre o preto e o branco que Capitãoe Menenavegavam, buscando se manter pelo lado certo da vida errada sem deixar de receber o que consideravam um ganho justo pelo que foi investido.
Amor e talaricagem na facção PCC 1533
A família 1533, o amor e a talaricagem
A vida continuava tranquila nos negócios e os casais ainda mais unidos e felizes. As saídas de Meneagora eram menos frequentes e mais rápidas, logo voltando para Lia. Já Capitãoe Cristiana quase não se ausentavam de seu lar.
Depois de trocarem muitas palavras sobre coisas totalmente indiferentes à nossa história, Menefixou o olhar na sua interlocutora e aventurou estas palavras:
— Não tem saudade do passado, Cris?
A mulher estremeceu, abaixou os olhos e não respondeu.
Meneinsistiu. A resposta de Cristiana foi:
— Não sei; deixe-me!
E forcejou por tirar o braço de Mene; mas este reteve-a.
— Onde quer ir? Está com medo de mim?
Nisso Menerecebe quase que ao mesmo tempo duas mensagens no WhatsApp. Ele dá uma olhada rápida, vê quem as enviou e resolve não responder naquele momento para não correr o risco de Cristiana se desvencilhar.
Ela realmente ficou embaraçada, como se ela também tivesse algum sentimento por ele que mantinha escondido por conta de seu casamento. Em suas noites ela devia pensar nele enquanto estava deitada ao lado do velho oficial, e Mene percebendo isso insistiu:
— Se não me ama, fala, “de boa”; receberei essa confissão como castigo de não ter casado com você, e sim com alguém que eu realmente nunca amei. Você sabe que eu fiquei com Liaapenas para poder ficar mais perto de você e acabei por me casar com ela apenas para que ela não odiasse você por me tirar dela, e foi você quem quis que nos separássemos.
Um romance do passado escondido de todos
Foi assim que Joaquim Maria contou para mim algo que ninguém sabia sobre o caso que existiu entre Cristiana e Mene quando este já namorava com Lia.
Cristiana ficou naquela época com ele apenas por prazer, e quando viu que o amor de Liaera verdadeiro e sincero deixou o jovem para a amiga, sem nunca lhe dizer nada. Agora, depois de tantos anos, Meneresolve exigir o resgate de uma paixão adolescente.
Para sua sorte, Liachegou, e Menemudou de assunto.
As mensagens de Sininho e Camila Veneno
O destino resolve que é chegada a hora de mudar o futuro daqueles casais
Cristiana se despediu do casal, mas, na saída, Mene ficou a sós com ela e novamente declarou seu amor, afirmando que não sossegaria enquanto não ficassem juntos, nem que fosse ao menos uma noite – ela lhe devia isso.
Quando Meneentrou novamente em casa, comentou com a esposa que Cristiana estava agitada e aconselhou que ela fosse visitar a amiga assim que possível para ver se o que a afligia.
Nunca saberei se o rapaz instigou a mulher apenas por um prazer doentio, para ver se Liahavia desconfiado de alguma coisa ou para testar o quanto a antiga amante conseguiria manter o antigo segredo.
Um descuido e uma descoberta
O que sei é que naquele dia, um pouco mais tarde, Meneteve que ir até o aeroporto de Viracopos retirar alguns equipamentos que chegavam e que deveriam ser levados até um galpão em Pirituba, na Zona Oeste de São Paulo, ainda naquele dia.
Enquanto isso, Lia foi à escola buscar Ana Sophia e deixou a menina para estudar na casa de uma amiga. Ao voltar para casa, sozinha, resolveu visitar Cristiana, conforme havia lhe sugerido o marido antes de sair.
Ela ligou para Menepara avisá-lo onde ela estaria, mas ouviu o telefone tocando no quarto – na pressa de sair, ele devia ter esquecido o aparelho em casa. Ela notou que havia duas mensagens não lidas, e resolveu ler as mensagens.
O casal não tinha segredos, confiavam totalmente um no outro. Foi ela mesma quem havia escolhido a senha do celular para ele. Eram as duas mensagens que Menehavia recebido e não lido enquanto estava tentando convencer Cristiana a voltar o relacionamento com ele.
Mensagem enviada por “Sininho”:
“Mene, se acha que sou trouxa, parabéns, a única coisa que você vai conseguir com isso é fika sozinho. Vc fika com a Camila, ela me disse. ME ESQUECE CARA DE PAU.”
Mensagem enviada por “Camila Veneno”:
“Seu merda, não aparece aqui, Sininho é minha amiga, vc é um bosta e td que vc disse prá ela é mentira, aprende ser homem. Vc me engana com ela, e vc nunca nunca nunca nunca me pagou, não sou sua puta. Rodada é sua mãe! Nunca vem mais.”
Lia sempre foi forte, mas sentou e chorou. Eram essas as missões que deixava o marido por dias fora de casa?
Armas de Viracopos à ZO SP
Uma mensagem misteriosa interrompe a missão de Mene
Menenão havia esquecido o celular, ele o deixara de propósito, como sempre fazia quando saía em um missão – se o sinal do aparelho fosse rastreado, seu localizador apontaria que ele não saiu de sua residência.
O que de fato ele esqueceu, porque se distraiu com Cristiana, foi de apagar as duas mensagens. A mulher não costumava mexer no aparelho, então ele depois resolveria com calma a parada com as duas piranhas de Campinas.
Ele retirou o pacote no aeroporto de Viracopos e já seguia pela Rodovia dos Bandeirantes quando recebeu uma mensagem no aparelho que levava nas operações e que só o Capitãotinha o número:
“Vem para já minha casa, agora. Preciso falar com você sem demora.”
O Capitãosabia que ele estava no meio de um serviço que ele mesmo havia passado. O que podia ser tão urgente assim para interromper o trabalho?
Primeiro imaginou que o esquema foi descoberto pela polícia, que iria interceptá-lo na estrada ou no momento da entrega, mas também poderia ser que o parceiro percebeu alguma trairagem e os compradores poderiam tentar zerá-lo e ficar com o pacote sem pagar.
Se arrependeu de ter aceitado aquele serviço. A paga era boa, mais que o triplo que o normal, mas eles haviam prometido às mulheres que não mais iriam fazer esses corres, só que não resistiram à tentação de uma grana fácil.
Missão cancelada
Quando minutos se transformam em horas
O azar é que já havia passado o último retorno, ficando longe para voltar por Campinas, e até para cortar pela Vinhedo-Viracopos teria que ir até Itupeva, perto de Jundiaí, para fazer o retorno, uma hora e meia de viagem – nesse tempo daria para entregar o pacote…
A cada quilômetro rodado suas emoções se alteravam, ora se tranquilizava, ora ficava ansioso – e havia ainda longos sessenta quilómetros pela frente para se martirizar, e nem o trânsito estava colaborando.
Eles estavam tão sossegados, para que foram se meter nessa? – Menenão se conformava.
“Preciso falar com você sem demora.” – dizia a mensagem.
Isso não estava certo, se o plano tivesse sido descoberto eles tinham uma mensagem combinada para Meneabortar a missão e mocosaro pacote.
Será que a polícia estaria esperando na casa do velho?
Ou talvez não, pode ser que o Capitãoficou muito puto com o cancelamento da missão e queria a companhia do rapaz para se desestressar. Isso tinha acontecido no passado, quando ele era mais novo, mas agora pode ser que o velho militartivesse uma recaída.
Aquela estrada parecia nunca acabar, nunca percebeu como era tão longa.
Pensou em seguir antes para sua casa, pegar a mulher e fugir, desaparecer por uns dias e só voltar depois de ter saído fora do flagrante; ou seria melhor seguir a ordem do companheiro?
Deveria ir a casa do Capitãoarmado ou desarmado, com ou sem o pacote?
Na casa do capitão expluso da PM
Meneresolve se deixar levar pelo destino
Entrou no condomínio e seguiu para a residência do Capitão. Não notou nenhuma reação diferente nos seguranças da portaria, que ligaram para a casa para que o proprietário autorizasse sua entrada.
Mas se a polícia estivesse esperando por ele, os seguranças, que eram todos policiais e guardas civis que faziam bico para o condomínio, não iriam estragar o flagrante, pelo contrário, deveriam estar torcendo contra ele.
“Foda-se”, pensou. Ele iria descobrir em poucos minutos.
Menepodia esperar tudo, menos aquilo
Ele gelou ao chegar próximo à casa e ver que o carro de Liaestava ali. Cristiana devia ter contado ao marido da talaricagem de Mene, e o velho que chamara Lia para resolverem juntos a parada.
Parou próximo, planejando uma forma de se livrar da acusação de Cristiana, pois talarico morre pelo Dicionário da Facção PCC 1533.
Não adiantaria fugir, ele seria caçado pela facção e seria justiçado.
Tribunal do Crime – Agiotagem
O destino não devia ter reunido novamente os quatro
Resolveu entrar, conversar, sentir o clima, ouvir as acusações e depois jogar a culpa em Cristiana, acusando-a de querer trocar o velho Capitãopor ele, e como ele a teria recusado, ela o acusava falsamente para se vingar.
No final ela iria se ferrar e ele se sairia bem, quem duvidaria que ela não tivesse interesse em trocar o velho por ele?
Às vezes o destino nos prega algumas peças.
Menee Capitãohaviam resolvido abandonar a maioria de suas atividades criminosas para se dedicar às suas famílias.
A infidelidade de Menecom outras garotas poderia ter abalado um pouco esse cenário tranquilo, principalmente depois que Liadescobriu as mensagens e resolveu ir à casa de Capitãopara desabafar com Cristiana, sem imaginar que a amiga também havia ficado no passado com Mene, e que agora desejava reatar o caso.
Mas nem Liae nem o Capitãojamais saberiam disso por Cristiana – Meneestava certo, a garota realmente queria ficar com ele, só não tinha coragem de assumir essa posição, temendo que se o marido desconfiasse mataria a ambos.
O certo pelo certo e o errado será cobrado
Quando Liachegou à casa, foi surpreendida por seis homens armados que mantinham Capitãoe Cristiana sentados em um sofá, e ela foi colocada junto a eles.
Cristiana chorava, mas ela e o Capitãoficaram em silêncio por quase uma hora até que Meneentrou e também foi imediatamente rendido.
Com uma voz suave, mas com as gírias próprias da facção, um dos homens avisou ao Capitãoe a Meneque seriam levados para um debate, pois estavam sendo acusados de agiotagem.
Com calma, o homem afirmou que não precisavam se preocupar, que tudo seria esclarecido e logo voltariam para casa se estivessem correndo pelo certo, e que o resto da quadrilha continuaria ali para garantir que eles não tentassem alertar a segurança ao sair.
Capitão saiu conduzindo seu carro, tendo ao lado Mene, e no banco de trás dois homens do Tribunal do Crime.
Passaram-se meia hora até que os que estavam na casa receberam a mensagem de que os homens estavam seguros no cativeiro e que podiam deixar a casa.
Foi mais ou menos essa história que Joaquim Maria me contou, se bem que acrescentei alguns detalhes que eu já conhecia, assim como outras coisas descobri depois conversando com um ou com outro por aí.
A noite já havia fechado quando o “patrão das biqueiras” no Boa Vista chegou para fechar o negócio, e tudo se resolveu rapidamente – ao lado do bar há uma loja de ração com uma balança, o que facilita tudo.
Por pura ironia do destino ficamos conversando por algum tempo antes de poder voltar para casa, porque uma equipe da força tática parou para fazer a abordagem em alguns garotos que desciam a avenida quase em frente ao bar em que estávamos.
Pedimos mais algumas cervejas enquanto olhávamos a polícia trabalhando. Como os garotos estavam limpos, só receberam os esculachos de praxe.
Me veio uma outra pergunta em mente: será que eles agiriam com esse mesmo procedimento se houvessem câmeras nos uniformes ou se estivessem em um bairro nobre da cidade?
Os policiais, assim como nós mesmos, cometemos uma ou outra infração e condenamos sem perdão os pecados cometidos pelos outros. Contudo, não vim aqui para falar sobre como os policiais fazem seu trabalho, e sim sobre dois casais de criminosos.
(Esse texto é baseado em fatos reais que foram adaptados tendo como base o conto “Casada e viúva” de Joaquim Maria Machado de Assis)
Aqueles policiais agiram como quaisquer outros homens teriam agido na mesma situação – todos participaram, e nunca saberemos com certeza quem é o pai da criança:
O nascimento do PCC seria evitável até o momento no qual o diretor do presídio foi empurrado para o lado e os homens se enfiaram com violência para dentro da instituição.
A Casa de Custódia do Carandiru estava sendo invadida sob os olhares sedentos de prazer dos telespectadores que, de suas poltronas, acompanhavam o evento e repetiam com o Datena: “bandido bom é bandido morto”:
A ereção e as emoções sentidas por aqueles homens que se enfiaram naquele emaranhado de corredores escuros e sujos baixou após algumas horas.
No entanto, os policiais, sem se darem conta, plantaram a semente do mal e regaram-na com o sangue de centenas de detentos e as lágrimas de milhares de seus amigos, mulheres e familiares.
Dez meses depois, há 134 km dali, na Casa de Custódia do Taubaté, o fruto daquele sêmen introduzido gerou o Primeiro Comando da Capital.
Até então existiam milhares de grupos de detentos agindo isoladamente em presídios, cadeias, abrigo de menores e clínicas de internação por todo o país, mas o Massacre do Carandiru teve o poder de integrar as diversas gangues.
Foi possível, então, implantar uma ética do crime dentro do sistema carcerário, algo que freasse os abusos sexuais, a violência física e a extorsão sofrida por outros encarcerados e por agentes públicos.
Um século e meio se passou, e eu e você somos expectadores de um mundo que banaliza a vida e a morte. Somos parte integrante da desumanidade de uma sociedade frívola e cruel, construída por valores insensíveis.
O estupro era evitável até o momento em que o diretor foi empurrado para o lado e os corredores escuros eram transformados em rios de sangue.
Nós, eu e você, assistimos ávidos de um prazer quase sexul a morte dos detentos do Carandiru, mas aquele estupro coletivo gerou um filho que agora nos cobra vingança.
Lamento ser eu a vir lhe dizer, mas o garoto não pode ser morto. Ele nasceu de um estupro e foi batizado em um rio de sangue.
O garoto cresceu, tornou-se uma ideia, um mito, e hoje vive na mente e no coração de milhões de brasileiros e de milhares de outros latino-americanos.
Cenas da pacificação trazida pela facção Primeiro Comando da Capital (PCC 1533) – a realidade brasileira superando a ficção dos americanos da DC Comics.
— Eu não vou entregar a cidade para o crime organizado, não importa o que os números digam! – retruca o investipol.
— E seus colegas? Quantos deles foram alvejados no ano passado? Nos ataques de 2005 o PCC matou 45 policiais em apenas alguns dias Em 1999, só em serviço foram 44 policiais mortos. No ano passado, já com a pacificação, apenas 11 colegas foram mortos. Em um único ano foram 33 policiais que deixaram de morrer nas mãos dos criminosos, voltaram para casa e continuaram com suas vidas e com suas famílias!
— Eu sei das estatísticas.
— Um dia eu prometo que nós vamos acabar com o Primeiro Comando da Capital. Esse país tem que ficar em pé outra vez, mas por enquanto vai devagar, por favor. – pede, em tom conciliador, o delegado.
— Mas a cada dia em que os cidadãos vão até um traficante, para pedir proteção ou justiça, mais difícil será para reconquistá-los. – insiste, inconformado e com a cabeça baixa, o investigador.
— Quer que as pessoas respeitem mais os policiais? Tem maneiras mais inteligentes que cuspir na cara do PCC: basta seguir as normas e os regulamentos. Se o cidadão estiver errado, prenda; se não tiver provas, não forje um flagrante ou abuse da força para conseguir informações. – finaliza o delegado.
A pacificação do PCC, o repórter e o faccioso
Juro que vi um repórter entrevistando um líder da facção:
— Há rumores que a facção está controlando as comunidades, criando regulamentos e dizendo aos criminosos quais os crimes que podem ser executados e determinando os locais. Por exemplo, não seria permitido assaltar próximo às biqueiras. Essa informação procede?
— Me diga, Qual é a taxa de homicídios em São Paulo? – questiona o faccioso.
— Estamos em uma queda histórica. – responde de pronto o repórter.
— Queda histórica. – começa a responder em tom de ironia o líder criminoso –. Sabe? Augusto Cesar reinou no período de mais longa paz e prosperidade que o mundo já conheceu. Ficou conhecida como a Pax Romana, e talvez um dia a pacificação que temos hoje no estado de São Paulo seja chamada de Pacificação do Primeiro Comando da Capital, quem sabe?
A pacificação do PCC, o jovem cidadão e o faccioso
Juro que vi um cidadão questionando um líder da facção sobre a pacificação em São Paulo:
— Eu quero agradecer por tudo que tem feito por essa comunidade. É verdade que o PCC proíbe mortes desnecessárias e controla na periferia o crime? Todo mundo está falando disso, eu só quero saber como funciona. – começa o rapaz.
— Primeiro, uma pergunta: você concordaria com a ideia de que uma organização criminosa impusesse as regras para os demais criminosos? – retruca o líder da facção.
— Se, há três anos, quando meus pais foram mortos, esse controle já existisse, eles talvez ainda estivessem vivos.
— Exatamente, mas a facção não controla diretamente o crime nas ruas, a facção dá as diretrizes e os disciplinas de cada cidade, de cada quebrada, são quem avaliam cada caso e, se acharem que alguém está furando as regras, chamam para o debate, e, se não resolver, manda para o Tribunal do Crime. – conclui o faccioso.
Juro que vi esses diálogos no primeiro episódio da quarta temporada da série “Gotam – Pax Pinguina” – com algumas modificações no texto para adequá-lo à nossa realidade:
Acresci os números referentes ao estado de São Paulo, substituí os termos “Pax Pinguina” pelo “Pacificação do Primeiro Comando” e “gangue do Pinguim” por “Primeiro Comando”, e as palavras “comissário” por “delegado”,e “Pinguim”por “um chefe da organização criminosa”.
Encaixou-se em nossa realidade como uma luva.
Os roteiristas de Gotam alegam que a quarta temporada foi baseada no enredo de três antigas revistas da coleção, mas o controle que Pinguim exerce sobre a criminalidade se assemelha à forma de agir do PCC, e não às descritas nas revistas da DC Comics.
O fato de uma produção estrangeira descrever de maneira tão precisa uma realidade nossa me leva a duas conclusões:
esse fenômeno não é local e está acontecendo em outras culturas ou
os autores se basearam em nossa experiência social.
O mundo real supera a imaginação do cinema
Entre as características quase universais e atemporais do mundo do crime estão as guerras entre grupos rivais (facções) – a hegemonia de organização criminosa com regras escritas e ficha de ingresso de membros é uma raridade tanto na ficção quanto na realidade.
O Primeiro Comando da Capital tem o mais sofisticado sistema burocrático entre todas as organizações criminosas.
No PCC não há punição sem lei anterior que a regulamente:
O Estatuto do PCC foi a base sobre a qual a facção se consolidou. Funciona para a organização criminosa como a Constituição funciona para a legislação de um país.
Quando age em desacordo com a ética do crime:
O Dicionário da Facção é um conjunto de normas que determinam e regulamentam o que é passível de punição e qual a penalidade. O Dicionário regulamenta o Estatuto, assim como o Código Penal e o Código de Processo Penal regulamentam a Constituição.
Para que tenham consciência e apoiem a luta:
Os membros da facção, seus familiares e simpatizantes devem se relacionar com a sociedade segundo as diretrizes da Cartilha do Primeiro Comando da Capital, que detalha a forma como a facção e seu Estatuto devem ser apresentados ao público externo.
Quem somos e em que condições estamos vivendo:
Existe uma Ficha de Cadastro no Sistema para os membros da facção, com detalhamentos que impressionam qualquer departamento de recursos humanos – lembrando que esses dados são coletados, distribuídos e guardados fora do alcance das autoridades.
Vencendo o crime organizado
A realidade superou em muito a ficção criada pelos quadrinistas da DC Comics: enquanto o PCC criou um sistema complexo, o assecla do Pinguim, responsável pelo gerenciamento do RH, possui apenas o registro dos criminosos e os locais onde podem atuar.
Até o momento em que escrevo, eu ainda não assisti a toda a temporada, mas posso adiantar que o pequeno Batman e o Detetive Gordon irão demolir a organização montada pelo Pinguim – dúvida?
No mundo real, os mecanismos de divisão do poder e o Código de Processo Penal são uma máquina de moer carne que sustenta milhares de advogados por todo o país enquanto divide nossa sociedade em castas.
Talvez apareça um Batman e um Gordon ou um salvador da pátria para nos proteger, ou talvez o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) dê mais um passo em seu lento deslocamento em direção ao aperfeiçoamento, ou talvez deixemos como está para ver como é que fica…
Existem oportunidades de mercado para a compra de cocaína da Bolívia e do Paraguai por um preço quase um terço abaixo das rotas atacadistas do Primeiro Comando da Capital.
O assunto deste artigo é o Primeiro Comando da Capital, a compra de cocaínatribu pura no atacado, a trairagem dentro da facção e o Regime Disciplinar ou Dicionário do PCC, mas nada disso de fato para mim importa, como pretendo demonstrar aqui.
Ernesto Sabato está certo ao afirmar que “viver consiste em construir futuras lembranças, [e eu, assim como ele, sabia que estava] preparando lembranças minuciosas que algum dia [haveriam] de me trazer melancolia e desesperança”.
E a pedido do próprio Ernesto, eu não vou me alongar no assunto, mesmo porque é tudo bastante simples, como você mesmo verá, e por isso não farei que você perca tempo lendo “palavras ao vento” ― hoje será papo-reto, resumo.
Só vou contar para você como eu fiquei sabendo de tudo, para que você não precise me chamar de novo na delegacia para dar explicações, assim, já fica tudo dito e pronto ― ah! antes que me esqueça, neste texto há trechos do livro do Ernesto: O Túnel.
Eu era office-boy em São Paulo, trabalhava no prédio da Jovem Pan na Avenida Paulista, e na esquina da Alameda Joaquim Eugênio de Lima com a Alameda Santos havia um Habib’s ― isso foi no começo da década de 1990.
Na empresa em que eu trabalhava, o pessoal do Departamento de Arte mandava que eu fosse comprar esfihas no Habib’s todos os dias. Era caro demais para meu bolso, então fiquei por meses só sentindo o cheiro e vendo os caras comendo.
É verdade me que ofereciam, mas eu dava uma desculpa e ia comer minha marmita de arroz, arroz, arroz, feijão e uma mistura (uma mistura era como minha mãe chamava o ovo).
Foi assim por meses, até que em um dia de pagamento, depois de acertar todas as minhas contas, fui ao Habib’s e me sentei sozinho para experimentar com gosto a tal da tão cheirosa e tentadora esfiha.
Só contei isso para que você entendesse o porquê de, naquela noite do ano passado, eu estar sozinho no Habib’s, degustando esfihas e lembranças minuciosas que sempre me fazem sentir melancólico e desesperançado ― eu curto esses momentos de solidão e deprê.
Basta de efusões. Eu disse que relataria esta história de forma enxuta, e assim o farei.
Eu estava sentado junto à janela, e uma barreira policial havia sido montada no final do quarteirão, então, quem entrava na rua, obrigatoriamente teria que passar pelos policiais ― só que não.
Para minha surpresa, entram no restaurante dois conhecidos meus, que, ao verem as viaturas policiais fechando a via, entraram no estacionamento do Habib’s e resolveram esperar lá dentro pelo fim da operação policial.
Vieram para minha mesa ― pronto, acabou meu sossego, lá se foi minha paz e minha degustação deprê.
Pediram de cara duas pizzas, uma de calabresa e outra portuguesa ― ai, meu Deus, só falta pedirem que eu rache a conta e eu nem gosto dessas pizzas!
A barreira não se encerrava, o assunto fluía. Os garotos estavam indo buscar dois quilos de cocaína pura, puríssima, vindos diretamente da Bolívia por meio de um contato em Santa Cruz de La Sierra ― pense em dois garotos empolgados.
Iam faturar uma boa grana sem o risco de pegar dois mil quilômetros de estradas e fazer negócio em um país estrangeiro com um contato que não conheciam pessoalmente.
Garotos espertos, não marcaram a entrega na cidade deles, e sim em Campinas ― cidade grande, com muito fluxo de veículos e muitas entradas e saídas.
Colocaram sobre a mesa os pacotinhos de dinheiro totalizando cinco mil Reais.
Empolgados, me contaram que já haviam, no ato da encomenda, depositado em uma conta da Caixa quatro mil. Quinze dias depois de pegarem a mercadoria, depositariam outra parcela de cinco mil.
Para falar a verdade eu estava mais preocupado com a conta do Habib’s, mas algo me incomodou na conta dos garotos: 5+4+5=14, tudo bem, é um bom preço, afinal o preço da cocaína em São Paulo gira em torno de 18 mil, só que, sempre tem o “só que…”
O preço de mercado da cocaína pura, gira em torno de 18 mil DÓLARES o quilo, à vista, e eles estavam comprando por 14 mil REAIS dois quilos, parcelado! ― pense em dois garotos empolgados e um tiozinho olhando com cara de “Oh! Coitados!”.
Bem, eu prometi que seria breve, que não iria me alongar, mas é importante que você saiba de tudo para entender que eu não tive nada a ver com isso, e só fiquei sabendo dos nomes, da história e dos locais por puro acaso.
Tocou o celular de um deles, era a garota que transportava a mercadoria, e como não tinha nenhuma mesa por perto ocupada, eles colocaram no viva-voz.
Ela falava com bastante naturalidade, e os garotos tentaram fazer com que que ela levasse a mercadoria para o estacionamento do Habib’s, ali mesmo, mas ela insistia em outro ponto.
Nunca tinha imaginado que o transporte funcionava assim. Eles haviam acompanhado o trajeto pelos Google Maps, legal essa tecnologia, só que, sempre tem o “só que…”
Reparei que não estava sincronizado on-line, que ela atualizava manualmente a localização ― estranhei isso.
Ela insistia em que eles fizessem o depósito da segunda parcela antes que a mercadoria fosse entregue ― estranhei isso também.
Só eu parecia achar que era muita coisa estranha para um negócio, mas cada um com seus problemas, a minha preocupação era que eles saíssem do Habib’s sem pagar as pizzas que por sinal, só eles estavam comendo.
Eu devia estar demonstrando nervosismo porque os garotos me intimaram a dar explicação para minha agitação.
Não ia dizer para eles que estava preocupado que não pagassem a conta do Habib’s, então disfarcei, e disse que o preço da droga estava incompatível, a atualização do localizador estava sendo feito manualmente e não senti firmeza na voz e no método da garota.
Vieram com aquela enxurrada de afirmações que tudo estava certo, que não tinham dúvidas, que era um irmão conhecido da facção, para depois de alguns momentos de silêncio, ficarem tensos e olhando um para o outro.
Pensei até que não tinham acreditado na minha história, e haviam percebido minha preocupação sobre quem iria pagar as pizzas, mas aí os dois foram para os celulares e esqueceram da minha presença ― eu deveria ter saído sem pagar naquele momento.
Começaram a ligar para o contato que estava intermediando o negócio, era um irmão de outro estado, mas que estava respondendo só em texto e, quando soltava a voz, dava para perceber que era gravação antiga ― só os garotos na empolgação não tinham manjado.
Dei o toque e, então, eles começaram a correr em busca de informações dentro do Sistema Carcerário ― um liga para um Sintonia, outro para um Cadastro, e começou o debate e a agitação dentro das trancas para conseguir informação do tal irmão.
Veja, não estou tentando alongar o assunto, pelo contrário, estou resumindo ao máximo, pois assim eu havia dito a você que o faria, no entanto é importante que você entenda todos os detalhes para ver que fui apenas um mero observador nessa história.
O cadastro do Mato Grosso do Sul passou o Cara Crachádo tal irmão. De fato ele existia e não era excluído, porém, alguém estaria usando o nome dele para aplicar golpes, e eles estavam sendo vítimas de uma armação.
Imagine a cara dos dois quando receberam essa resposta das trancas. Planos maléficos foram feitos na hora, e pelo celular armaram rapidamente uma equipe para pegarem a garota, com ou sem drogas.
Engrossaram a voz quando ela ligou novamente, ameaçaram usar o Tribunal do Crime do PCC para pegar tanto ela quanto os outros envolvidos ― ela desligou. A barreira policial a essa altura já havia ido embora, e eu pensei em pedir um café.
Desisti do café. Se eles não pagassem a pizza, ia sobrar para mim, e teria que rezar para que o saldo no cartão desse para pagar a conta ― eu só tinha 10 reais em dinheiro. Será que daria para tirar os 10% do garçom? Às vezes por causa de cinco reais o cartão não passa.
Toca o celular, uma mensagem escrita, dizendo que eles deviam deixar quieto o bagulho e engolirem o prejuízo em paz, que eles sabiam quem os garotos eram. Mandaram até as fotos das casas dos dois rapazes, dizendo que fariam uma denúncia para a polícia caso insistissem.
Vi que a foto era do Google Street View, mas ficava evidente que o golpista tinha informações sobre os garotos e poderia causar problemas se quisesse.
O tal do irmão ainda propôs um negócio para os garotos: ele pagaria 50% do lucro em outros golpes se eles indicassem possíveis compradores e dessem dados para ele poder chegar nos caras, assim como alguém tinha feito com eles.
Esse encontro no Habib’s aconteceu há um ano, e só agora me lembrei de contar essa história, pois fiquei sabendo que o mesmo golpe, utilizando o nome do mesmo irmão continua sendo aplicado, com alguma variação.
Fui àquela noite reviver uma lembrança do passado, mas acabei construindo mais uma futura lembrança, minuciosa, que hoje já me traz certa melancolia e desesperança.
Mas o importante é que consegui cumprir o que prometi: não me alonguei no assunto mais que o estritamente necessário ― como acaba de me lembrar Ernesto.
O grupo criminoso Primeiro Comando da Capital, assim como as bruxas e o comunismo, é utilizado para que grupos políticos, que estão no poder ou desejam chegar a ele, criem um ambiente de terror com alguma finalidade específica.
Aparentemente é o que voltou a acontecer agora na Bolívia, onde parte do governo do presidente Luis Arce deseja facilitar a ação no país da Drug Control Administration (DEA), apesar de há muito a facção PCC 1533 ter caído no esquecimento pela população boliviana.
Os números do Google Trends não deixam dúvidas de que o fantasma está sendo alimentado artificialmente para então poder ser combatido.
Facção PCC: os dois lados da questão
Quem se opõe a essa narrativa para justificar uma intervenção americana no país, que no geral não acaba bem, é o vice-ministro de Substâncias Controladas, Jaime Mamani Espíndola, que afirma que se fosse significativa a presença da facção paulista no país as autoridades não poderiam circular livremente como o fazem.
Quem apoia e alimenta essa narrativa e pede a presença do DEA, que no geral acaba trazendo dólares para o país e holofotes para políticos e agentes do Estado através de políticas de “intercâmbio”, é a oposição de direita que há poucos anos tentou tomar o país a força e a Comunidad Ciudadana (CC), uma coligação política de centro liderada pelo ex-presidente Carlos Mesa.
Dona Celina só foi escolhida como líder da comunidade por ser evangélica e por ter sido indicada pela liderança do PCC. Ela nem imagina que foi assim, mas eu estava lá quando houve o debate da formação e de quem deveria liderar a comunidade.
Tinha acabado o jogo entre Vila Nova e Vila Progresso, e nós estávamos em frente ao bar Gordo, que fica ao lado do campinho, quando do nada surgiu a conversa, que virou um debate, e a aprovação e o fechamento foi na hora:
A estratégia seria montar uma associação de moradores na comunidade para lutar por melhorias na educação e na estrutura de escolas e creches, na pavimentação das ruas, no abastecimento de água , e também para servir como mediadora na pacificação das ruas.
Mas quem assumiria a liderança da associação?
Alguém falou no nome da Dona Celina e pronto. Ninguém ali duvidava que ela era a pessoa perfeita para o cargo. Ela devia estar em sua casa naquele momento preparando o almoço e nunca iria imaginar que seria formada uma associação e que ela viria a liderar.
Eu até posso contar a você como e por que ela foi escolhida, mas Rafael Lacerda Silveira Rocha é quem pode explicar como a igreja evangélica entra nessa história e como esse tipo de arranjo social funciona na prática, pois foi ele quem estudou a fundo essa questão.
Dona Celina chegou ao bairro quando as ruas eram de terra.
Todos conhecem a bondade e as lutas daquela mulher, que vive dando conselho para os garotos do corre e até para o patrão da biqueira, sempre se prontificando a ajudar quem quer sair daquela vida.
Ela é querida por todos e conquistou o respeito da da liderança local do dono das biqueiras do bairro e representante do Primeiro Comando da Capital na comunidade.
Dona Celina é ministra de uma congregação evangélica que lhe empresta autoridade moral e cria empatia em muitos no bairro que percebem nela um pouco daquilo que veem em suas famílias, ou, pelo menos, gostariam de ver.
Ela é uma “pessoa de bem”, e é essa a face que a comunidade quer apresentar para a imprensa e para os representantes do governo. Ela é a luz que deverá iluminar o caminho da comunidade.
Até mesmo Deus tem uma legião de anjos para garantir seu governo celestial (Isaías 40), e se fomos feitos à sua imagem, nós também temos que nos garantir.
Rafael conta em seu trabalho o caso de um pastor, líder em sua comunidade, que tentou manter a pacificação baseando-se apenas em sua força moral e em seu poder de negociação.
Apesar dos esforços do pastor, um jovem morreu, e o religioso, ao questionar os assassinos sobre o acontecido, escreve:
Não é soltando pombos brancos ou fazendo um abraço simbólico em torno do Cristo Redentor que se conseguirá a paz, mas também é verdade que não se chegará a ela ligando para o 190, nem tampouco confiando no Tribunal do Crime do PCC.
As relações de poder dentro de uma comunidade carente são complexas e necessárias para a equação de diversas forças, pacifistas, religiosas, de trabalhadores, policiais, criminosos e desocupados.
Sem a força do Primeiro Comando da Capital,Dona Celina não conseguiria o respeito e a tranquilidade para organizar a população. Nos primeiros meses foi o disciplina do PCC que passou a trocar umas ideias com os inadimplentes com o caixa da associação.
Sem a força policial, Dona Celina ficaria refém apenas da vontade do dono da biqueira e não conseguiria a tranquilidade para organizar as demandas da comunidade.
Rafael conta um caso em que o líder da comunidade organizou um jogo entre dois grupos opostos com o apoio da polícia. Ele colocou o Estado como força mediadora do conflito e ainda fortaleceu sua liderança:
Uns queriam a paz, outros queriam manter a guerra, se juntasse tudo em um único lugar poderia ter um banho de sangue, então o jogo foi marcado em um campo neutro:
Rafael me contou que a relação entre líderes da comunidade e das facções não acontece só aqui no Brasil, e me apresentou a história de vida e as conclusões acadêmicas de uma simpática socióloga americana.
Mary explica que as lideranças comunitárias e o crime organizado local compartilham uma série de valores, como o cuidado pela manutenção dos aparelhos públicos do bairro e o controle de brigas e demonstrações violentas em espaço público.
Essa ligação entre comunidade e mundo do crime acaba por dificultar a ação dos órgãos públicos na repressão ao tráfico de drogas local. É a teoria da eficácia coletiva pulando dos livros acadêmicos para as ruas das comunidades periféricas:
Cansei de ver nas comunidades trabalhadores e estudantes defendendo a filosofia do 15, como a utilização do Tribunal do Crime para a pacificar os bairros ou evitar estupros e roubos nas quebradas.
A liderança se conquista pelo respeito e pela ética
Se você é da Vila Nova, talvez conheça Dona Celina, e se você se acha que é mais importante, forte ou influente que ela, desculpa aí, mas ninguém dá a mínima para o que você pensa a seu próprio respeito.
Liderar é conciliar, saber ouvir e estar presente nas necessidades do grupo, se fazer entendido e tentar entender as opiniões dos outros, e Dona Celina faz isso como ninguém.
Líderes de bairros são acusados pela polícia ou por “cidadãos de bem” de terem conchavo com traficantes, mas aqueles que acusam não se candidatam e, se o fazem, não se elegem ― dona Celina se elegeu e circula livremente entre aqueles lobos.
Líderes de bairros são acusados por aqueles que vivem no mundo do crime de terem conchavo com a polícia, mas aqueles que acusam não se candidatam e, se o fazem, não se elegem ― dona Celina se elegeu e circula livremente entre aqueles lobos.
Agora ela estará sempre entre as matilhas mediando a paz, armada apenas de sua honestidade e confiabilidade, será testada e criticada todos os dias pela população, pela polícia, pelos líderes religiosos e por aqueles que vivem no mundo do crime.
Dona Celina está disposta e tem capacidade de enfrentar esse desafio, fluindo entre o mundo do crime e o mundo do Estado de Direito, assim como Marielle Franco o fazia até ser silenciada pela milícia.
A decisão de tirar a vida de outra pessoa por parte dos representantes do Estado deve ser aceita ou não? Como essa questão é vista em nossa sociedade e dentro da facção paulista Primeiro Comando da Capital?
Não sou Deus, mas posso ser o seu juiz. Basta que eu queira e que nos encontremos em determinadas situações para que, de acordo com uma razão obscura, eu possa te matar e não seja punido por isso.
Quem me deu a ideia de vir te contar que sua vida — e a de seus filhos, pais e amigos — pode estar em minhas mãos foi o canadense Graham Denyer Willis, através de seu artigo The right to kill?, publicado na página do MIT Center for International Studies.
Ele já começa citando um documento denominado White Paper, do Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América (DOJ), que garante ao governo dos Estados Unidos da América o direito de tirar a vida de qualquer americano.
Então, você — e seus filhos, pais e amigos —, vivendo aqui no Brasil sob a proteção da sociedade organizada brasileira, acha que tem mais garantia de vida que um cidadão americano protegido pelo Estado de Direito estadunidense? Fala sério!
Esqueça aquela utopia iluminista e racionalista de que você está protegido pela sociedade, pois ela te deixará na mão, salvo exceções pontuais; e não reclame de eu poder te matar, pois isso é natural, seus antepassados já o haviam permitido e seus descendentes também o farão:
“A ideia de que o Estado tem o direito de matar seus próprios cidadãos raramente é contestada. De Hobbes a Weber, é explícito ou implícito que os estados decidem as condições sob as quais os cidadão podem, e os que de fato devem morrer…” — Graham Denyer Willis
Quem é o Estado? O Estado sou eu!
Não acho que sou Napoleão, muito menos Luiz XVI, mas quem você acha que é o Estado que teria, e de fato o tem, o direito de tirar a sua vida?
Se você acredita que é o Estado de Direito, pode ficar tranquilo: você vai morrer de velhice, afinal, no Brasil não existe a pena de morte.
Só que a realidade não está nem aí para aquilo em que você acredita, e por isso eu, que não sou o Estado de Direito, posso tirar a sua vida impunemente.
Na calada da noite a lei é outra — o que é ilegal
Nas periferias das grandes cidades, onde grande parte da população vive ou trabalha, o Estado de Direito só chega através de viaturas policiais que casualmente entram, fazem algumas abordagens e saem.
Só na periferia paulistana são mais de 10 milhões de pessoas, e elas não atribuem mais legitimidade às ações policiais das forças públicas do que àquelas praticadas pelas facções criminosas por meio de seus Tribunais do Crime.
Parte da sociedade apoia o Tribunal do Crime — o que é ilegal
Mesmo que a lei no papel os proíbam, são mais de 160 assassinatos que acontecem por dia em nosso país; desses, menos de 20 chegam a ter seus culpados condenados — os outros 140 são mortes de pessoas que não valem o custo da apuração.
Segundo Willis, O Estado deixa que pessoas que não lhe fazem falta morram através de sua omissão, seja dentro ou fora dos presídios — para tal basta investir na Rota na rua sem garantir a eficácia da polícia investigativa.
Parte da sociedade não apoia o policial que mata — o que é ilegal
Essa semana, a sociedade organizada deixou claro os limites em que os agentes públicos podem matar em seu nome. Não faz parte das leis escritas de nosso país, mas desse grande pacto social do qual fazemos parte, ora com kkks, ora com carinhas vermelhas.
O cabo PM Victor Cristilder Silva, como dezenas de outros agentes da segurança pública de todos os níveis, acreditou que matar bandido era algo permitido em nossa sociedade e foi a Júri com esse argumento:
“Meu sangue na veia é de policial de rua. Chegava em casa, meu filho já estava dormindo e eu não dava atenção para minha esposa. Mas o que eu estava fazendo era para melhorar a vida deles. Nunca tive nada na minha vida. Meus pais me criaram com muita dificuldade, mas nunca me desviei para o caminho do mal. Entregaria a minha vida para proteger um cidadão de bem.”
Não colou, tomou 119 anos de reclusão, mas isso não significa que a sociedade, através do seu Tribunal do Júri, declarou que policial não pode matar quem ele acha que é bandido, mas, sim, a forma como isso não deve ocorrer, marcando o limite para tal ato — e Victor passou o limite socialmente aceito.
Parte da sociedade apoia o policial que mata — o que é ilegal
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tido por muitos como aliado do PCC, foi o governador com o maior índice de letalidade policial e efetividade em prisões de membros de gangues, incluindo o tempo do governador Paulo Salim Maluf, o Rota na Rua.
Antes que alguém me corrija…
Sim, no tempo de Maluf o Primeiro Comando da Capital não existia, mas havia, sim, grupos organizados em gangues locais ou quadrilhas especializadas em assaltos a bancos e cargas e sequestros, que por vezes fechavam alguma pequena cidade para fazerem arrastões.
Alckmin prega que lugar de criminoso é na prisão ou no cemitério cada vez que a polícia paulista é acusada de chacinar bandidos, como foi o caso nesta semana, em que uma dezena de assaltantes foram cercados e mortos em uma estrada rural em Campinas.
Ninguém em sã consciência acreditaria que uma dezena de assaltantes de bancos armados com rifles, metralhadoras, granadas, pistolas e revólveres, se tivessem de fato trocado tiros com a polícia, não teriam acertado um policial, nem que fosse raspão.
No ano passado houve dezenas de casos semelhantes, o mais emblemático aconteceu nos Jardins, área nobre da capital paulista, onde uma dezena de assaltantes fortemente armados também foram mortos — só que dessa vez um policial foi atingido.
Ou em 2014 o caso dos doze PCCs mortos em um ônibus na Castelinhoem situação similar, e ainda mais emblemático, os 111 prisioneiros chacinados durante a rebelião de 1992 no Presídio do Carandiru — ao contrário de Victor, os PMs ultrapassaram o limite socialmente aceito.
Esse é o limite informal aceito por consenso — o que é ilegal
A legislação brasileira não prevê a pena de morte, mas aceita e faz com que os mecanismos de apuração e punição de certos crimes entrem no limbo seboso da burocracia, mas não são apenas as ações policiais do Estado constituído que têm esse direito.
Parte da sociedade apoia Tribunal do Crime que mata — o que é ilegal
O Tribunal do Crime mata em todo o país, e sua ação por vezes é acobertada pela população local, que considera positiva sua ação, assim como outra parte da sociedade vivendo em outras áreas considera legítimo, mesmo que ilegal, o extermínio feito pelas forças públicas.
Eu não ia te contar nada, preferiria te deixar dormir tranquilo, mas já que Graham Denyer Willis puxou o assunto, taí. Posso não ser Deus, mas posso ser seu juiz, basta que eu queira e que nos encontremos em determinadas situações para que, mesmo sem uma razão, eu possa te matar.
O número aproximado de executados por pena de morte nos EUA é de 50 por ano; no Brasil, 50 por mês… … e ainda tem gente que briga para que tenha pena de morte no Brasil kkk.
Nas periferias, o Estado de Direito é ditado pelo crime organizado, mas, ao tentar assumir esse papel, o facção PCC 1533 passou a se curvar com o peso da responsabilidade de manter um Sistema de Justiça com direito à defesa.
O que acontecerá se os Tribunais do Crime da facção PCC 1533 deixarem de atuar nas periferias e dentro do Sistema Carcerário? Tudo de bom, né? Talvez, mas não é o que nos aponta César Barreira, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).
Parte da população só conhece a Justiça através do coturno do policial, que aborda seus filhos nas periferias das grandes cidades, ou dos Tribunais do Crime do Primeiro Comando da Capital, que prendem, torturam, julgam e executam.
E onde está o Estado de Direito ou o Estado Constituído?
Termos falados com boca cheia por quem mora longe das áreas de risco é para a maioria da população uma utopia feita para poucos.
A eficácia do Tribunal do Crime do Primeiro Comando da Capital está em declínio há algum tempo, mas não aparecia oportunidade para eu escrever sobre o tema — isso até Juliana Diógenes publicar o artigo GDE é facção criminosa nova, atrai adolescentes e tem crueldade como marca, no qual o sociólogo César Barreira diz que a facção PCC 1533, assim como as outras instituições que sobreviveram ao tempo, envelheceu e tomou juízo.
Devido a esse fenômeno, parte da população passou a reconhecer os Tribunais do Crime da facção paulista como um instrumento de Justiça — essa que antes só era conhecida através do coturno do policial ou pela televisão, quando surgiam pessoas falando com boca cheia sobre o Estado de Direito e do Estado Constituído.
O julgamento do Tribunal do Crime do PCC, antes sumário, hoje passa por um processo com direito à defesa e contraditório — com o aperfeiçoamento do mecanismo de apuração houve aumento do tempo do cativeiro dos réus, possibilitando à polícia resgatar mais cativos que estavam sendo julgados e prender os disciplinas do PCC e seus garotos da contenção.
A entrevista do sociólogo César Barreira, dada à repórter Juliana Diógenes, veio justamente para me trazer luz sobre as razões pelas quais essa transformação está se dando com o PCC: ele cresceu, sobreviveu, venceu, envelheceu e, para manter o poder conquistado, sua liderança passou a colocar em risco outros membros da facção, como os disciplinas e os garotos da contenção.
Podem criticar a facção paulista por seus Tribunais do Crime, mas nem percam tempo: eles tendem a se extinguir — e creio que nenhum brasileiro tem a ilusão de que o Estado de Direito ou o Estado Constituído irão tomar o seu lugar e levar Justiça às periferias.
César Barreira avisa que a molecada das outras facções vão assumir essa posição…
… eu disse: “vão”? Desculpe, os garotos das facções aliadas, Guardiões do Estado (GDE 745) no Ceará e Bonde dos 13 (B13) no Acre, já estão atuando com seus Tribunais do Crime, e, pior, as facções já nasceram para correr pelo lado errado, também.
“Seja intencional ou não, crime desempenha um papel social enorme nas favelas. A polícia tem sido simplesmente uma força de ocupação. Tudo que o crime tem oferecido estas comunidades, o Estado terá de substituir. … Todos os tipos de apoio. Crime preenche um vácuo deixado pelo Estado “. — Marcinho VP (Comando Vermelho CV)
A periferia “passou a ser classificado como uma democracia de baixa intensidade, ou uma semidemocracia. Pois, apesar de existirem os dispositivos institucionais, eleitorais e até alguns traços cívicos, elencados anteriormente, não é capaz de gerar um estado de direito democrático que assegure os direitos civis e políticos de parte considerável de sua população.” Antônio Sérgio Araújo Fernandes, é professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e José Maria Pereira da Nóbrega Júnior, é professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
“O PCC nasceu porque o sistema político deixou muitas pessoas em estado de abandono, então elas tiveram que criar alguma solução, e hoje é uma organização tão grande que, se você tentar eliminá-lo, você criará uma enorme quantidade de violência.” — Graham Denyer Willis — University Lecturer in Development and Latin American Studies in the Department of Politics and International Studies
O número de pessoas mortas no estado de São Paulo comparado com outros índices brasileiros e os principais fatos políticos que possam ter influenciado o índice.
Violência e polícia: três décadas de políticas de segurança no Rio de Janeiro é o título de um estudo publicado pela socióloga Silvia Ramos, no qual é discutida a política de polícia pacificadora e a falta de continuidade nas políticas de segurança pública — e olha que quando ela escreveu esse trabalho a casa ainda estava apenas começando a ruir.
A pesquisadora elaborou um gráfico comparativo no qual coloca os índices do estado do Rio de Janeiro e o nacional — eu gostei da ideia, e acrescentei os dados do estado de São Paulo. Para ficar ainda mais interessante, incluí números mais antigos, do final do Regime Militar, e só não fui mais atrás pois os dados não seguiam os mesmos parâmetros.
Assim, eu não me preocupo se você é de direita, de esquerda, ou fica no meinho. Você mesmo pode chegar a suas próprias conclusões: se a vida era menos violenta nos tempos do “Rota na Rua” e “bandido bom é bandido morto”, ou agora com maior controle sobre as corporações policiais.
Concomitante ao índice histórico e político, marquei fatos importantes que tiveram influência direta na questão da mortandade: a aprovação da Constituição Cidadã de 1988, a Lei do Desarmamento, a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e os Ataques do PCC em 2006.
Assim, eu não me preocupo se você é de direita, de esquerda, ou fica no meinho. Você mesmo pode chegar a suas próprias conclusões: se a vida era menos violenta nos tempos da Constituição outorgada pelos militares em 1969, ou agora com a Constituição promulgada pela Constituinte.
Se você defende ou critica o ECA e a Lei de Desarmamento, pode ver através dos números se o que você acha se reflete na realidade. “Contra fatos não há argumentos”, então você poderá:
reafirmar seu ponto de vista, agora com convicção empírica;
mudar de posição (duvido); o
reafirmar seu ponto de vista baseado no achômetro, apoiado em um conceito especulativo, com sólido argumento teórico.
Uma política de Segurança Pública baseada em achômetros leva à morte de policiais e guardas civis e militares. Silvia Ramos e eu acreditamos que por vezes as políticas internas dos governadores têm mais influência que as grandes questões nacionais. Ela cita como exemplo o caso das UPPs no Rio de Janeiro — queda de 26,5% na taxa de homicídios.
Só que, analisando com cuidado os dados, vemos que a taxa já caía 3,25% ao ano no período anterior aos UPPs (2002 a 2007). Com o desenrolar do projeto (2008 e 2009) houve, de imediato, uma redução de 6,1%, e um decréscimo anual de 1,45% até 2012, quando começou seu processo de entropia devido a corrupção e descontinuidade.
Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2021 nos países com maior influência da facção Primeiro Comando da Capital:
Silvia Ramos e eu acreditamos que a personalidade do governador influencia de maneira direta o número de pessoas assassinadas, mas os dados de São Paulo não concordam conosco, pois o linha dura Paulo Maluf, e seu sucessor, o humanista Franco Montoro, tiveram um número crescente das taxas de homicídios em seus respectivos governos.
Na sequência os governadores paulistas foram pró uso da força (Orestes Quércia e Fleury Filho) e mantiveram a taxa estável, e foram sucedidos pelo humanista Mário Covas que viu os índices de homicídio explodirem. Seu sucessor José Serra, com uma política técnica, manteve o índice sobe controle, e Geraldo Alckmin, também com uma visão técnica, derrubou o índice, que se mantém estável por quase uma década, e agora chega no seu menor índice desde 2001.
Cheguei ao trabalho de Silvia Ramos por ela ter afirmado que:
“Entre 2009 e 2012, Antonio Ferreira Pinto, (…) colocou a Rota na linha de frente da repressão ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Em 2012, a estratégia deu início a uma guerra na qual o crime organizado matou pelo menos 26 PMs na Grande SP, enquanto a ação de policiais fardados e de grupos de extermínio provocou centenas de mortes na periferia. Num único mês (maio de 2013) da gestão do novo secretário de Segurança, Fernando Grella, as mortes por intervenção policial caíram 84% na capital (…)”
Contrapondo-se a lógica, o índice de mortalidade não se alterou com a colocação ou com a retirada da “Rota na Rua” no período entre 2009 a 2012, mas após os ataques do PCC em 2006 e a reação virulenta das forças policiais, houve uma na redução da taxa de homicídios — o estado de São Paulo foi o principal alvo da ação do PCC em 2006.
Eu, no entanto posso continuar afirmando que o PCC, com os ataques em 2006, trouxe um grande ganho para a população, pois deixaram de ser mortas nos anos seguinte 2.500 pessoas a menos. Estou analisando os números, sem levar em consideração as opiniões pessoais ou o drama pessoal das vítimas daquele reich — favor não vir com mimimis politicamente corretos.
As causas prováveis da queda das taxas de homicídio após 2006:
Controle maior da Facção sobre seus comandados;
alteração da política de Segurança Pública do estado; e
fim da guerra entre agentes de segurança e facções criminosas.
As mortes despencaram em São Paulo, enquanto o número de prisões cresceu vertiginosamente, demonstrando uma maior profissionalização da ação policial. O Brasil (25.2) ocupa hoje o 7º lugar no ranking latino-americano de assassinatos, enquanto São Paulo (8,28) está mais pacificado que o Uruguai (8,42).
Entre os estados da União é o que possui a menor taxa de fatalidades:
“Como resultado das políticas de segurança pública desenvolvidas pelo governo, o Estado teve, nos últimos 12 meses, as duas menores taxas de homicídios dolosos da série histórica, iniciada em 2001. Foram 7,77 casos e 8,28 vítimas para cada 100.000 habitantes.”
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo em outubro de 2017 para a UOL Notícias