A igreja ao lado da biqueira do PCC
O Primeiro Comando da Capital já não é o mesmo. Lincoln Gakiya e seus colegas do MP-SP conseguiram mudar o funcionamento da máquina, dificultando meu trabalho.
A isso juntou-se o trabalho “Vinganças, guerras e retaliações: Um estudo sobre o conteúdo moral dos homicídios de caráter retaliatório nas periferias de Belo Horizonte” apresentado pelo doutorando em sociologia Rafael Lacerda Silveira Rocha ― 441 páginas para digerir!
Há tempos não saio mais à noite, sei lá, perdi o interesse, mas ontem, no entanto, resolvi dar uma saída, refrescar a cabeça ― tempos difíceis.
Fui ao Parque Industrial devorar o espetinho de gato do seu Ricardo e jogar conversa fora com a garotada da quebrada.
Antes do 15 colocar ordem na casa, o antigo pastor de uma igreja evangélica que existe por ali foi expulso pelo antigo dono da biqueira, que achava que os crentes atrapalhavam os negócios da quebrada.
O tal dono da biqueira morreu, e a polícia nunca descobriu quem foram os assassinos e arquivou o caso. Uns culparam policiais que trabalham em um condomínio próximo, outros atribuíram a morte ao PCC, alegando que o falecido não seguia a ética da facção.
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O relacionamento entre a igreja e a biqueira
O tal morreu por ficar com uma parte maior que a dos companheiros em um roubo. Irmão ou não tem que correr pelo certo, mesmo do lado errado da vida ― quem matou o tal foram os companheiros que fizeram a fita junto com ele e foram lesados.
Aquele pastor que foi expulso nunca mais voltou, mas depois que o tal seguiu desta para o inferno, a igreja reabriu com um novo pastor ― gente boa, cresceu no bairro e conhece todos, ministrava antes na área 14, que fica lá pelos lados de Avaré.
Por ser gente da comunidade, ele conhece as regras. Como ninguém é louco de relar nos carros dos fiéis durante o culto próximo à biqueira, a crentaiada toda saiu ganhando.
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Enquanto isso, do lado de fora, o fluxo segue suave.
Por outro lado, a polícia não desce zoar os moleques enquanto os crentes estão por perto, afinal, quase todos os parentes dos garotos dos corres, do gerente e do patrão frequentam os cultos ― a mãe de um deles é até ministra ―, mas cada um na sua, com todo o respeito.
Bem, eu estava lá na esquina conversando com os garotos quando o novo pastor veio em passos apressados até nós. Eu peguei um espetinho de gato e já ia me retirar, pois podia ser alguma responsa, mas o gerente me segurou pelo braço. Constrangido, fiquei.
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Entrando na igreja para sair do PCC
Certa vez, já com esse novo pastor, assisti a uma cena dramática, por isso não queria ficar por ali.
Miguel, conhecido como Caveirinha, fez de tudo para entrar para o 15. Ele era firmeza, assumia responsas que ninguém queria pegar e desenrolava tudo com perfeição, não demorou para chegar a companheiro e mais rápido ainda virou irmão.
Passado pouco mais de dois anos, por algum motivo que ninguém entende, ele resolveu sair da facção e virar crente.
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O pastor como fiador do convertido
O pastor foi conversar com o patrão da biqueira para confirmar que Caveirinha era, agora, de Cristo e não poderia mais pertencer à Família 1533.
O aval já tinha vindo de dentro do Sistema, só faltava a palavra do pastor, e ele foi lá para confirmar a conversão ― beleza então.
Rafael comentou em seu trabalho de doutorado, apresentado à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, sobre esse procedimento:
Quem é da organização criminosa Primeiro Comando da Capital sabe que a conversão é uma forma de sair da facção sem sofrer punições.
O pastor e o convertido foram chamados pelo dono da biqueira, que falou mais ou menos assim para os dois:
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Não se pode se esconder atrás da Bíblia
Coincidiu de eu estar por lá semanas depois quando Caveirinha entrou em um carro para ser levado a um canavial para receber um salve. O pastor foi poupado de acompanhá-lo até o local, mas precisou ficar e ver o garoto seguir seu destino.
Caveirinha havia voltado a roubar, apesar de ter saído da facção e do mundo do crime, e esse tipo de atitude não é aceita, é trairagem, e trairagem se paga com a vida. Dessa vez Caveirinha não iria morrer, só receberia um salve para se lembrar de suas obrigações.
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O convertido tem que ter conduta exemplar
O pastor e o rapaz tinham sido avisados. A conduta do convertido tinha que ser exemplar, e o pastor era tão responsável quanto Caveirinha no sucesso da conversão, assim como um irmão é responsável por aqueles que ele apadrinha para o batismo.
Esse era um dos motivos pelos quais resolvi sair com a chegada do pastor. Achei que ele vinha para resolver outras diferenças a respeito do rapaz, mas não, era apenas para acertar os detalhes da festa junina que iria ser feita pela igreja e pela comunidade no bairro.
Há tempos não saio mais à noite, principalmente agora com Lincoln Gakiya e seus colegas criando dificuldades e com as 441 páginas de Rafael para digerir, mas foi bom eu ter saído ontem, assim pude esquecer de tudo e escrever sobre o novo pastor e sua ovelha.
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