Assim, a facção paulista foi reconhecida como defensora do sonho desses todos que não foram “eleitos” como estando acima do encarceramento.
Alguns julgam serem eles relevantes para a sociedade e justos, enquanto “outros” seriam aqueles que tensionam a ordem social considerada ideal e pacífica.
A organização criminosa PCC 1533 foi eleita por essa parcela dos não eleitos para sim, tensionar a ordem considerada por alguns como ideal e pacífica.
Os mais abastados raramente são de fato punidos pela lei
Tem sido usual no seio social, a opinião no sentido de concepção da pena como instrumento de vingança e castigo, assim poucos se lembram de que a finalidade da pena é retributiva, preventiva e ressocializante, conforme consta da própria Lei de Execuções Penais, sendo defendida pela maioria dos doutrinadores, é a teoria da finalidade utilitária da pena, daí a necessidade de vinculá-la à coação, na condição de resposta a algo ou a determinado fato.1
Porém, o que não se pode desconsiderar é que a pena, pelo menos no que diz respeito ao direito penal, é um exercício de poder do homem sobre o próprio homem.
Já fizemos breve exposição sobre a pena, baseada em Michel Foucault, no que diz respeito à questão do suplício, que nada mais é do que uma pena na qual a coletividade se “apropria” do corpo do condenado como forma de dominação e repressão a ações contrárias ao status quo estabelecido àquela época.
É incoerente afirmar que a pena será maior ou menor, mais ou menos intensa, de acordo com o contexto histórico em que é definida e aplicada.
A prisão como forma de protejer as elites
Vera Malaguti Batista2 instrui a questão explicando que “na primeira metade do século XIX, a possibilidade de rebeldia começa a assombrar as elites.
Os números de delitos contra a propriedade aumenta desde o final do s éculo XVIII”, haja vista que “as necessidades da burguesia modelaram amplamente as funções de defesa social do direito penal, e mantiveram as antigas diferenciações de classe da legislação penal.”
E completa a autora explicando que a prisão se converte na pena mais importante de todas no mundo ocidental.
Essas penas tomaram diversas formas e gradações de acordo com a gravidade do delito e com a posição social do condenado.
Fica de fácil apreensão, neste contexto, que a pena não atinge a todos de forma igualitária, já que, como exposto anteriormente no caso das prisões, os mais abastados raramente sofrem as conseqüências na prática de determinado ilícito e, assim, a pena não cumpre qualquer papel no que diz respeito à restauração da justiça.
Camila Cardoso de Mello Prando3 complementa o assunto lecionando ser praxe entre os historiadores, que o “controle punitivo se desenvolve em consonância às mudanças estruturais relativas ao novo sistema econômico e político capitalista”, completando a discussão ao expor que “o foco principal recai sobre o surgimento das prisões enquanto punição central desta nova forma de controle.”
Até aqui é possível conceber uma ideia básica a respeito da pena, mas também é necessário entender que, aliada à norma, ela tem a finalidade de tutelar os bens jurídicos garantidos pelo Estado.
Juridiquês para justificar o injustificável
Em outras palavras, seu caráter repressor busca impor aos agentes que compõem o tecido social o alerta de que o desvio de conduta nas normas pré-estabelecidas será punido e, dessa forma, tenta evitar o aviltamento dos referidos bens, mas aqui novamente se torna necessário expor a fragilidade de tal conceito, uma vez que a pena não tem caráter erga omnes, pelo menos no que diz respeito à posição social do criminoso.
Todavia, há que se destacar como fator principal deste tópico o caráter de retribuição e ressocialização da pena. Para isso basta uma simples consulta ao Código Penal brasileiro, especificamente em seu artigo 59, para compreender que:
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.
Cf. JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p.22.
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis. Rio de Janeiro: Renavan, 2003. p.46.
PRANDO, Camila Cardoso de Mello. A contribuição do discurso criminológico latino-americano para compreensão do controle punitivo moderno: controle penal na América Latina. In: Veredas do Direito. Belo Horizonte: Escola Superior Dom Helder Câmara, jan.-jun. de 2004. p.79.
A paz entre ladrões só pode vir de dentro para fora
Aqueles criminosos conheciam e se fizeram ser respeitados nas comunidades em que estavam inseridos: nas carceragens, nas comunidades periféricas e no mundo do crime.
Assim, um modo específico de gestão do uso da violência nas interações entre a polícia e o crime é estabelecido. Não existe agressão física, tampouco troca de tiros ou enfrentamento, mas um conflito ‘contido’ inserido numa esfera de interação discursiva voltada ao alcance de acordos financeiros.
Indaiatuba SP: um exemplo prático da paz entre ladrões
Edgar Allan Poe ensinava que existia uma forma correta para se açoitar uma criança: devia ser da esquerda para a direita.
O escritor explica a razão:
Todas as pancadas devem ser na mesma direção para lançar para fora os erros, mas cada pancada na direção oposta, soca para dentro os erros.
Talvez ele tenha razão.
Apesar das surras impostas pela sociedade, o tráfico de drogas e o crime se mantêm fortes e robustos.
Passamos pelo Regime Militar e pela Redemocratização e, com lágrimas nos olhos, vejo que não há mais esperança para o problema: falhamos.
Açoitamos a criança em todos os sentidos, e não em uma única direção como Allan Poe orientou.
E em rebento crescido não haverá açoite que possa ser dado pelo sistema policial e jurídico que surta qualquer efeito, o mal feito está feito.
Só nos cabe abaixar a cabeça e apreciar a divisão dos despojos entre os criminosos que se organizaram e se fortaleceram sob nossos próprios açoites.
continua após o mapa…
Diálogo entre ladrões: assim fundiona a paz entre ladrões
Esse diálogo trocado sobre um conflito no Morada do Sol demonstra como a organização criminosa gere os conflitos de maneira natural e com profundo conhecimento:
Edson Rogério França, o “Irmão Cara de Bola”, “Torre” da organização criminosa em Indaiatuba conversa com Willian do bairro Morada do Sol.
Willian Neves dos Santos Vieira, o “Irmão Sinistro”, é soldado da facção criminosa e morador da rua Custódio Cândido Carneiro no bairro:
— O espaço que tem lá na rua 59 é bom, é meu e do Mateus, tá ligado irmão? O irmão Matheus, conhece o Matheus? — pergunta Sinistro.
— Não, não conheci. Você fala o do trailer?
— Não irmão, lá embaixo na 59, lá embaixo, no trailer é o Marcelo, é outro menino, inclusive ele pega mercadoria de ti. — explica Sinistro.
— Não, de mim não. — se defende Cara de Bola.
— O sol brilha para todos, tenho este espaço lá há mais de treze anos. Agora, um menino meu estava precisando de uma força e eu ajeitei um canto para ele fazer a caminhada, e o Cláudio agora está ameaçando matar a mulher dele. Pô, o Cláudio é prá cá, eu sou mais prá lá, pro fundão, sou lá do lado da rua 80 e da rua 78. Já o TG do CECAP é firmeza.
Tribunal do Crime do PCC – o mediador aceito
Eu não conheço o Cláudio, portanto eu não posso afirmar que ele tenha sido açoitado quando criança do lado certo ou errado.
O que sei é que ele também negocia as drogas do Primeiro Comando da Capital e, portanto, deve ter tido as mesmas aulas que os outros criminosos.
Cláudio teve que prestar contas de sua atitude. Ele já estava sem saber em análise por suas atitudes.
Outro dia ele foi mostrar uma pedra de crack para Keiti Luis Von Ah Toyama, o “Irmão Japa”, mas este não gostou, disse que era um pouco melada.
Cláudio explicou que é a mesma que não é a da boa, é da comercial, a mesma que vende em suas lojas:
— Se quer quer, se não quer não quer, é R $10,50 a grama, é pegar ou largar.
Seja como for, as crianças cresceram e aprenderam a brincar sozinhas, agora não adianta mais bater do lado certo e nem reclamar o leite derramado.
Cláudio foi julgado por quem obteve o direito de impor as regras naquele local aproveitando a omissão do Estado.
A facção criminosa Primeiro Comando da Capital atua no Uruguai em parceria com grupos criminosos locais, como o Primer Comando Uruguayo (PCU).
O PCU é a responsável pela logística e segurança do esquema de parte do tráfico do PCC em território uruguaio.
A apreensão de grandes carregamentos de drogas, oriundos do Uruguai, em diversos portos pelo mundo comprova a existência dessa rota alternativa de tráfico do PCC 15.3.3.
Uma menor rigidez na fiscalização fizeram do porto de Montevidéu uma opção para suprir o mercado europeu com as drogas colombianas.
Já na Argentina, a principal rota ligando ao Paraguai é a hidrovia do rio Paraná-Paraguai, que possui poucos controles em ambos os lados da fronteira, mas um complexo nível regulatório para controlar as barcaças.
Essa união entre criminosos permitiu cooptar ou coagir os agentes públicos responsáveis pela repressão e de Justiça através de bombas, ameaças, sequestros, e subornos.
O assassinato sem precedentes de três soldados no Uruguai, alerta para a ousadia crescente dos criminosos em um país há muito considerado um dos mais seguros.
No início da manhã de 31 de maio, foram localizados os corpos de três soldados que foram executados na base naval de Fortaleza de Cerro, em Montevidéu.
As prisões sul-americanas passaram a ser centros logísticos, de treinamento e doutrinação do Primeiro Comando da Capital.
O aprisionamento em massa sem critério de separação por periculosidade e faixa etária, permitiu que em 2009 o Primer Comando Uruguayo estivesse atuando depois de poucos meses em contato com facciosos brasileiro e paraguaios dentro das prisões uruguaias.
Graham Denyer Willis e Benjamin Lessing explicam que dentro dos presídios e no meio de milhares de soldados prontos para serem doutrinados na filosofia e nas estratégias da organização fica fácil para as chefias da facção ficarem protegidas de seus inimigos e se dedicarem ao gerenciamento dos negócios da facção.
Grupos criminosos há muito são usados para encobrir as reais intenções de grupos políticos e a facção criminosa PCC 1533 é a desculpa da vez para justificar a corrosão do sistema democrático e das instituições.
Jefferson é uma peça que faz parte de um mecanismo de ataque que vincula o inimigo político a fantasmas com grande poder de assombro no imaginário popular como: o comunismo, as pautas morais e religiosas, e inimigos externos como a Venezuela e Cuba, ou o Primeiro Comando da Capital.
O PCC como ferramenta de ataque as instituições
Tenho como foco de estudo o PCC e acompanho há anos esses ataques, no entanto, nesses últimos 15 dias me surpreendi com a avalanche de réplicas dessa mesma acusação aparecendo em diversas partes do mundo quase que simultâneamente tanto nas redes sociais quanto na inprensa tradicional.
Se houve ou não houve prisões de integrantes da facção durante o governo não faz diferença, há sempre um discurso pronto para justificar o envolvimento.
Quando a presidente Dilma Rousseff apresentou uma apreensão recorde de drogas do Primeiro Comando da Capital, o então deputado Jair Bolsonaro afirmou que aí estava a prova do aumento do tráfico de drogas e que “todos sabem como funciona”, apontando ao procedimento de deixar cair parte da mercadoria para afagar a polícia.
Anos depois, já presidente, Jair Bolsonaro bateu um novo recorde de apreensão de drogas do Primeiro Comando da Capital, e então? Isso seria prova do aumento do tráfico e o envolvimento das autoridades como ele mesmo afirmou poucos anos antes?
PCC uma ferramenta que se provou eficiente
O modelo de ataque as instituições, governos e políticos, no entanto, funcionou perfeitamente.
Para o público a que foi dirigido a realidade não importa, os partidos e políticos de esquerda ficaram marcados como tendo envolvimento com a facção paulista e esse discurso segue sendo repetido cotidianamente.
O Timashevsky era filho de servos e foi libertado sob os ventos da humanização das relações trabalhistas e sociais promovidas pelo imperador Alexandre II.
O governante russo enfrentou os gravíssimos problemas sociais e agrários derivados da política de servidão implantada 208 antes e garantiu a liberdade da servidão para os homens do campo, a liberdade de imprensa e das artes.
Por aqui os grupos de extrema direita vincularam com sucesso a imagem das instituições na organização criminosa paulista e esse mesmo modelo está sendo replicado em todos os países do continente americano, África e agora Europa.
Apesar do Paraguai e Uruguai, cujos governos estão alinhados com a direita, serem referências na expansão da organização criminosa, pouco se explora a proximidade política dos governos e instituições, ao contrário de Portugal ou do Chile.
Sr. @gabrielboric CHILE va directo a la Xenofobia TOTAL y la AUTODEFENSA contra la delincuencia extranjera.Como no se da cuenta? DEBE ACTUAR RÁPIDAMENTE Y DAR UNA SOLUCIÓN AHORA YA o tendrá un regadío de muertes en las calles de criminales extranjeros #SantiagoAgoniza#expulsionpic.twitter.com/WW0DNQUrl9— Crva 🇨🇱🇨🇱🇨🇱 (@Crva_01) December 2, 2022
Portugal
El aeropuerto de Países Bajos que se posiciona como el punto de llegada de las drogas mexicanas, el juicio de Genaro García Luna en EE. UU. y el análisis sobre el control del PCC en el narcotráfico en Portugal.
A história talvez não se repita, no entanto, estamos vendo o filme sendo passado novamente em outros prados. A evolução social que ora se processa em vários países pode ser barrada por uma narrativa.
Alexandre II foi morto em um atentado e as reformas por ele implementadas em muito se perderam. Ao escolher a obra de Timashevsky de 1858, quais foram essas as ligações vistas pelos editores do site IA Primavera Vermelha? Seriam essas?
this is a judge of the supreme court, before he was a lawyer for the PCC, (first command of the capital) he was placed to overthrow president Jair Bolsonaro, in Brazil we are living the dictatorship, this judge has no limits! we are a prosperous nation
Você deve saber de onde nós viemos e o que já superamos, para só então decidir o que você vai fazer. E se você ou o Lincoln e seus colegas quiserem pegar meu lugar, boa sorte, vai firme e vamos ver se vão aguentar.
Não adianta se esconder ou tapar os ouvidos, pois os espíritos das trevas não se calarão até que eu, agora, ou alguém, algum dia, lhe conte essa história. E se já for tarde, e se eu já tiver me juntado a eles nas trevas, só lamento por você e por Lincoln e seus colegas.
Você acha que sabe o que é sofrer, mas poucos viveram nas quebradas trabalhando, de sol a sol, para chegar ao dia do pagamento e virem todo seu suor roubado, ao entrar na favela ou no bairro, pelo moleque da rua de baixo, para pagar o arrego para o policial do tático…
O site eb.mil.br replica uma reportagem de Aline Ribeiro para O Globo e me obriga a vir até você para lhe levar a esse passado, para que você, por si mesmo, possa vislumbrar o futuro que, assim como eu, Aline e Lincoln e seus colegas já estamos vislumbrando.
Os pais de Lincoln e de seus colegas do MP-SP deveriam ter dado o mesmo conselho a eles, pois agora que estão perto de realizar o sonho impossível de acabar com o PCC 15.3.3, parece que começam a ver que talvez tivesse sido melhor ter tido outro desejo. Agora é tarde:
Aline, eu, Lincoln e seus colegas nos lembramos de como eram as trevas antes que Marcos Willians Herbas Camacho e sua equipe assumissem o patriarcado da Família 1533. Se você não se lembra, vou pedir para Deiziane lhe contar um pouco de como era…
E no princípio eram trevas, no início do início, antes que a paz chegasse à comunidade do Serviluz em Fortaleza com os acordos firmados entre as gangues de jovens locais, como ela narra após dezenas de entrevistas com moradores e pessoas que atuam na região.
Se você realmente quer a paz, deve saber de onde nós viemos e o que nós já superamos, para só então decidir o caminho que deve tomar, e não fazer como o Governo cearense, que creditou a baixa da taxa de homicídios a suas políticas de segurança pública.
Você pode concordar ou não com a realidade, mas ela continuará prevalecendo sobre sua opinião, e Deiziane a analisou e previu o fim desse equilíbrio e da pacificação. muito antes que os governantes cearenses, Aline, eu e Lincoln e seus colegas o fizéssemos.
Poucos garotos que vivem naquela comunidade ouviram falar em Zygmunt Bauman, mas Deiziane afirma que o sociólogo e filósofo polonês descreveu com perfeição o que se passa pela mente dos meninos do mundo do crime:
Há poucas semanas, fui à Indaiatuba gravar uma entrevista. A cidade tem uma taxa de homicídios de 0,86 para cada cem mil habitantes – muito diferente do Ceará, com seus 52 para cada cem mil – e, se não bastasse isso, está entre as 80 com maior IDH do país.
Há alguns anos, em um dos meus primeiros estudos a respeito da facção, conheci o bairro Jardim Morada do Sol, hoje com 70 mil habitantes, e que, na época, vivia em clima de incertezas: assaltos, furtos em residências, estupros e guerra de gangues.
Haviam três biqueiras principais que disputavam entre si os limites de atuação, e os garotos, para se garantir, andavam armados em plena luz do dia. Lembre-se que não estou falando do Serviluz no Ceará, e sim do bairro da hoje pacata e progressista cidade paulista.
A ordem para a paz e os limites de cada grupo foram definidos por acordos fechados dentro das muralhas da Penitenciária de Hortolândia, que determinou, inclusive, pena para os crimes cometidos contra a população próxima às biqueiras. Mas quem traça esses limites, determina a pacificação e decreta a guerra?
E no princípio eram trevas, no início do início, antes que a paz chegasse às diversas cidades e estados sob a hegemonia do Primeiro Comando da Capital, que sob o controle dos moderados mantém a pacificação e o controle da base.
“Eles estão mais seguros lá dentro que na rua. Se sair morre.”
A admiração dos garotos do Primeiro Comando, em especial pelo Marcola, não foi sequer arranhada pela revelação do colega de Lincoln, o Marcio Sergio Christino, que acusou Marcola de ter sido um informante da polícia e ter entregue seus aliados.
No entanto, as rígidas regras impostas pelo grupo liderado por Marcola justificam a indignação, principalmente nos níveis intermediários da organização, que se sente tolhida ao não poder armar as biqueiras para reagir às ações policiais, entre outras limitações.
A vitória de Lincoln e seus colegas e o fim dos moderados
A disputa para ampliação de limites territoriais, influência ou poder acontece em todos os grupos sociais, seja entre as crianças nas creches ou nas ruas, ou entre os adultos nas igrejas, nos locais de trabalho, nas biqueiras, e até mesmo dentro da viatura policial.
Entre os membros de facções que disputam o mesmo território e dentro das organizações criminosas por aqueles que disputam o poder interno isso não poderia ser diferente, essa é uma característica humana.
Há quem prefira não se arriscar e deixar a luta para outros: esses são os cordeiros, que servem de alimento na cadeia alimentar e mantêm nossa estrutura social funcionando com certa estabilidade, como nos ensinou Étienne de La Boétie.
Mas entre os faccionados não existem cordeiros. O mais pacífico é um alfa que tem seu domínio territorial garantido por sua força — não há amigos dentre os aliados, companheiros e irmãos, há o respeito pelo mais forte e pelo grupo.
Lincoln e seus colegas estão agora a um passo da vitória. As ações do MP-SP e do GAECO enfraqueceram o grupo dos Catorze alfas que lideram a facção, e é por essa razão que Lincoln acredita que o PCC se desintegrará nas guerras internas.
PCC fica sem liderança após transferência de líderes
E no final serão as trevas, no fim do fim
A liderança enfraquecida terá que disputar o poder dentro das muralhas de Presidente Prudente, e de lá essa guerra vai se espalhar para o restante do estado.
Enquanto isso, centenas de pequenas facções sem estrutura aterrorizarão os bairros periféricos de vários estados, que hoje já estão pacificados, e muitos deles seguirão o destino dos morros cariocas, com grupos de milicianos disputando o tráfico.
As periferias das cidades paulistas, os cortiços, as ocupações e as biqueiras próximas aos centros das cidades, sem garantias e ordem, vão se armar para garantir suas bases comerciais de tráfico de drogas.
As viaturas policiais, que hoje abordam os cidadãos com certa tranquilidade, pois quase todas as biqueiras paulistas atuam desarmadas, voltarão a enfrentar grupos armados, e a cabeça dos policiais mais ativos ou corruptos voltarão a ser disputadas.
Entregaremos para aqueles que nasceram após a década de 1990 uma São Paulo e um Brasil como eles nunca viram, livre da hegemonia da facção Primeiro Comando da Capital!
Só não entendo por que não senti a empolgação que esse momento merecia por parte da repórter Aline Ribeiro e do promotor de Justiça Lincoln e seus colegas, afinal, vencemos – Uh, uh?
Alguém, por algum motivo, espalha aos quatro ventos que o Primeiro Comando da Capital (facção PCC 1533) domina o crime, aterroriza a política, a polícia e a população da região amazônica. Nada é menos real.
Quem ganha com esta desinformação?
Penso que as organizações criminosas que atuam na região se beneficiam com o uso dessa antiquíssima técnica: a ilusão hipnótica.
Chamando a atenção para um ponto de modo a ocultar outro, deixando-o fora do alcance da capacidade sensitiva e liberando-o de vencer as barreiras racionais daquele que deve sofrer o engodo, pois as áreas de seu cérebro que deveriam processar de maneira crítica a informação sobre um ponto acaba por desconsiderá-lo em detrimento de outro.
Essa técnica quando utilizada por uma pessoa se chama hipnose e pode fazer sumir uma moeda ou um mação e fazê-las aparecer em outro ponto. Essa técnica quando utilizada por um grupo se chama política e pode fazer sumir uma etnia ou uma floresta e fazê-las aparecer em outro ponto como dinheiro.
O ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles do governo Jair Bolsonaro descreveu essa técnica como “deixar passar a boiada”: enquanto incentivavam e mudavam a legislação para facilitar a exploração ilegal de madeira e minerais na região amazônica chamavam a atenção para a perigosa presença entre os índios yanomâmis do rei da Noruega Harold V ou dos integrantes da facção paulista Primeiro Comando da Capital.
Nem mesmo quando a Polícia Federal apreendeu com 77 Kg de ouro dos garimpos ilegais em terras indígenas o tenente-coronel Marcelo Tasso, o sargento Gildsmar Canuto (ambos da Casa Militar), e alguns soldados da Polícia Militar de São Paulo, poucos meses depois do presidente Jair Bolsonaro haver entregue aos militares paulistas o controle sobre as terras yanomâmis, a imprensa e das redes sociais parecem ter acordado do transe.
Não foram poucas as vezes ao longo da última década que acompanhei os altos e baixos da facção PCC 1533 nos estados do Norte do país, mas a facção nunca chegou a assumir o poder que lhe atribuíram sendo que no artigo “Abandonados, crias do 15 entram em extinção no Acre” faço um apanhado da precária situação dos paulistas por aquelas bandas.
A plataforma de ciência ambiental e conservação Mongabay, em 2021, elaborou um mapa delimitando as áreas de atuação de cada grupo criminoso. No entanto, o projeto de pesquisa denominado “Cartografia da Violência na Amazônia” foi elaborado com dados obtidos nos anos anteriores e refletem a derrocada e o racha da facção Família do Norte (FDN).
Após esse período, parte da facção FDN se consolidou como o Cartel do Norte, que inicialmente se aliou ao PCC e posteriormente tornou-se seu inimigo. O dinamismo das guerras entre as gangues no Norte transformaram o belíssimo trabalho de compilação de dados do projeto Mongabay em um registro de um passado.
No entanto, mesmo esse quadro publicado no artigo Organized crime drives violence and deforestation in the Amazon, study shows captou o efêmero momento no qual Primeiro Comando da Capital esteve em seu ápice, mas mesmo nele podemos notar a insignificância do PCC nessa geleia geral que é a divisão das pelo menos duas dezenas de grupos criminosos nos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Rondônia, Roraima, e Tocantins.
Se em tese a Ilusão Hipnótica é a capacidade de usar fortes ilusões para alterar e controlar os comportamentos e ideias dos seus alvos, na prática é apontar para o poder do rei da Noruega ou da facção paulista para desviar a atenção dos grupos paramilitares e militares envolvidos com madeireiros e garimpeiros em terras indígenas.
O assassinato do embrião jurídico e operacional internacional que germinava na UNASUL dificulta o combate à facção Primeiro Comando da Capital (PCC 1533).
Eu, assim como você ou qualquer outra pessoa pessoa de bom senso, cheguei às minhas próprias conclusões antes mesmo que Lúcia Helena, que estudou profundamente o assunto, concluísse seu pensamento.
Eu e você sabemos que não faz a menor diferença qual foi a conclusão a que ela chegou, afinal nós sabemos que a moral da história foi: “nós não sabemos o que de fato queremos” – fique claro que quando digo “nós”, não me refiro a mim ou a você.
Caso você não se lembre da história de Lady Ragnell, te refresco a memória:
Um cavaleiro enorme desafia o Rei Artur a descobrir qual seria o maior desejo de uma mulher, e, para cumprir essa missão, o monarca e seu sobrinho Sir Gawain saem pelo império fazendo essa pergunta a todas as mulheres que encontram.
Um sistema unificado de combate ao crime organizado
No artigo publicado pelo Instituto de Estudios Internacionales, da Universidade do Chile, os pesquisadores concluem que as organizações criminosas transnacionais só seriam contidas se houvesse legislação que desse amparo ao combate internacional.
Essas entidades seriam moldadas para combater especificamente às organizações criminosas latino-americanas, o que possibilitaria a implementação de medidas legais e operacionais feitas sob medida para uma realidade emaranhada típica do subcontinente:
Apenas a criação de uma legislação que possibilitasse a investigação, a prisão e a condenação de criminosos em qualquer nação sul-americana teria chance de vencer a permeabilidade dos grupos criminosos transnacionais.
Pirotecnia Midiática PCC 1533 e polícia
Nosso mais profundo e sinistro desejo
Há mais de uma década ironizo a cobertura midiática das ações promovidas pela“Operação Ágata” e cada novo passos na implementação do SISFRON (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras) por servirem apenas como pirotecnia:
A “Operação Ágata” e o SISFRON são ferramentas de combate aos crimes desenvolvidos e operados por profissionais altamente preparados e dentro de um planejamento estratégico para atender aos mais profundos e secretos anseios da população.
Nós não queremos que Lúcia Helena venha a nos esclarecer de qual seria a moral por trás da história do casamento de Sir Gawain e Lady Ragnell simplesmente porque nós sabemos o que queremos ouvir, e talvez não seja exatamente o que ela viesse a nos dizer.
Da mesma maneira policiais e militares que atuam nas operações contra as drogas não querem ouvir que estão atuando apenas em um picadeiro montado para que grupos políticos mantenham entretidos os cidadãos, alimentando-se do medo como os Amanojakus.
As armas e as drogas continuam sendo entregues apesar da eficácia do sistema que não visa de fato a eliminação do tráfico e sim a espetacularização do combate ao crime.
Rei Artur UNASUL e facção PCC 1533
Manter vivo o inimigo para garantir sua própria existência
Eu, assim como você ou qualquer outra pessoa pessoa de bom senso, sei que o ex-presidente Jair Bolsonaro esteve certo em abandonar a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) por esta ser, segundo ele, um organismo de viés ideológico gramsciano que se baseia em estudos empíricos.
Artur e Gawain não descobriram a resposta para a questão do gigante por terem justamente utilizado uma técnica empírica: perguntar às mulheres sobre seus desejos.
Assim como as mulheres arturianas, nós não sabemos realmente o que queremos e do que precisamos, e daí vem a beleza da política: entender nossos desejos mais profundos e secretos.
Certa vez Fernando Haddad afirmou ao AntiCast que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva possuía esse dom:
O que almejamos, eu, você e qualquer outra pessoa, é que um bom vendedor nos ofereça esperanças e nos mantenha como se estivéssemos assistindo a um filme de suspense na telinha, nos enchendo de medo e expectativa a cada instante.
Crê que eu esteja errado em minhas conclusões? Bem, tenho 57.797.847 razões para discordar.
O governo brasileiro abandonou a UNASUL porque sua política de combate ao crime organizado difere daquelas propostas pela entidade:
Fortalecer a segurança cidadã, a justiça e a coordenação de ações para enfrentar o Crime Organizado Transnacional.
Propor estratégias, planos de ação e mecanismos de coordenação, cooperação e assistência técnica entre os Estados membros para influenciar as áreas mencionadas.
Promover a articulação de posições de consenso sobre temas da agenda internacional relacionados à segurança cidadã, à justiça e à ação do Crime Organizado Transnacional, favorecendo a participação cidadã e atores sociais e cidadãos no desenvolvimento de planos e políticas nos referidos itens
Viabilizar o intercâmbio de experiências e boas práticas, fomentar a cooperação judiciária, as agências policiais e de inteligência e formular diretrizes sobre prevenção, reabilitação e reintegração social.
Enquanto isso o Primeiro Comando da Capital e o ex-presidente Jair Bolsonaro parabenizam a todos aqueles que apoiaram o fim da integração internacional proposta pela UNISUL, assim o espetáculo pode continuar com policiais, militares e helicópteros em voos rasantes.
Governo Bolsonaro termina com poucos resultados
Bolsonaro, então candidato à presidência da República em 2018, afirmou que a prova que o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) fracassou no combate ao tráfico transnacional era os constantes recordes de apreensões de drogas pela polícia, algo que segundo ele, só aconteceria se houvesse um aumento do fluxo. Bolsonaro foi eleito e no final de seu governo a polícia apresentou um recorde no número e na quantidade de drogas apreendidas.
Apesar do Brasil durante o seu governo ter abandonado diversas práticas multinacionais de combate às facções criminosas, em especial ao Primeiro Comando da Capital, o país promulgou em 2020 Acordo Quadro de Cooperação entre os Estados Partes do Mercosul e Estados Associados para a Criação de Equipes Conjuntas de Investigação (Decreto 10.452/2020).
No entanto, apesar de ter avançado, os governos latino-americanos nos últimos anos deixaram a desejar, optando por ações pirotécnicas, inflamando o discurso em detrimento à ações investigativas efetivas e os recentes ações do Novo Cangaço e que a ampliação das áreas de atuação do Primeiro Comando da Capital em Canindeyú e no Norte da Argentina.
Matéria assinada por Rosendo Duarte no prestigiado site ABC Color garante que o crime organizado espera incrementar suas ações em Canindeyú após a posse do presidente brasileiro Luiz Inácio da Silva que se deu em 1º de janeiro de 2022:
Tendo a discordar. A troca de Bolsonaro por Lula me parece como trocarmos um espantalho por uma equipe de segurança — enquanto um aparenta eficácia, o outro apresenta resultados.
Muitos dizem que o cangaço e as facções criminosas são, antes de mais nada, um fenômeno social. Seria o Primeiro Comando da Capital de hoje o cangaço do passado?
O Novo Cangaço — um grupo ou uma modalidade criminosa?
No Brasil, o Novo Cangaço é uma modalidade criminosa que descreve a ação na qual grupos do crime organizado dominam apenas pelo tempo de duração de um ataque planejado em uma região delimitada — um tipo secular de crime, no entanto, o Primeiro Comando da Capital (facção PCC 1533) profissionalizou os procedimentos.
Autoridades do Paraguai e da Argentina discutem estratégias para se contrapor aos ataques do Novo Cangaço e vejo tanto a imprensa e quanto autoridades utilizando o termo “Novo Cangaço” para designar uma facção criminosa como se fosse um nome próprio:
Não descarto que possa haver algum grupo que tenha se apropriado do nome, no entanto, o importante é estudar o fenômeno em si, como demonstra a morte de diversos membros das forças de segurança e a prisão de um número cada vez maior de profissionais do crime que se especializaram nessa modalidade criminosa.
O Primeiro Comando da Capital já possui em território paraguaio 700 integrantes conhecidos pelas autoridades e suas ações tem se concentrado nas províncias paraguaia e argentina próximas à fronteira com o Brasil.
Devido ao planejamento, a sofisticação na execução, aos contatos dentro das forças de segurança pública e privada, e o alto investimento envolvido é impossível os agentes de rua reagirem com eficácia aos ataques, e sua coerção só é possível através de um sofisticado processo de investigação com respaldo em legislação específica — o que pode contrariar interesses políticos.
Esse trecho do “Temacast Lampião” poderia estar se referindo tanto ao bando de Lampião quanto a um grupo de criminosos de hoje nas favelas e comunidades carentes brasileiras e agora ultrapassam a fronteira em direção ao Paraguai e a Argentina:
O Temacast, o cangaço e a facção PCC 1533
O Primeiro Comando da Capital é fruto de nosso tempo, mas não tem como não notar as semelhanças entre esse fenômeno criminal e a era de ouro do cangaço ao ouvir o podcast “Lampião”, do canal Temacast.
Leia este texto, que é uma transcrição de parágrafos inteiros (como o acima), Em alguns deles, substituo a palavra “cangaço” pelo termo “facção criminosa”, e a descrição do passado se encaixa como uma luva para os dias de hoje, mas, se preferir, ouça você mesmo o bate-papo entre os acadêmicos Francisco Seixas, Larissa Abreu, Igor Alcantara e Fabrício Soares: Temacast
Facções criminosas: milicianas e criminosas
Hoje não há uma clara diferença entre os facciosos oriundos do mundo do crime e aqueles que vieram das milícias, no entanto os milicianos se originaram da mesma forma que os antigos cangaceiros do nordeste.
Os primeiros milicianos tiveram sua origem como meros “prestadores de serviço”, aí o termo prestadores de serviço tem que ficar entre aspas, porque eles prestavam serviços de jagunços para os chefes políticos locais e pequenos empresários das comunidades.
Por outro lado, as grandes organizações criminosas brasileiras cuja origem se deu no mundo do crime, como o Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital e Família do Norte, tiveram sua célula mater na antiga Falange Vermelha (FV), do Rio de Janeiro.
Os primeiros grupos facciosos de que se tem relato eram, na verdade, meros grupos de presos que visavam apenas se autoproteger dentro das muralhas do sistema carcerário, mas que passaram a atuar fora das celas, inicialmente em suas próprias comunidades.
Conta-se que já em 1840, em Feira de Santana, na Bahia, havia um cangaceiro chamado Lucas da Feira, que tinha uma maneira de agir muito parecida com a de Robin Hood: ele fazia os saques e distribuía parte do butim para a comunidade carente.
Assim como o cangaceiro Lucas da Feira, os facciosos faziam uso de extrema violência e crueldade para garantir o sucesso de suas ações, contudo eram aceitos com certa naturalidade e até com boa vontade dentro de suas bases territoriais.
O Lampião de ontem, o Marcola de hoje, e o antagonista de amanhã
Da forma com que a imprensa e a história apresentam Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, tem-se a impressão que ambos foram fundadores dos movimentos que representam: facções criminosas e cangaço.
No entanto, foram apenas frutos de um processo que os antecederam em décadas.
Creio que você, assim como eu, não possui uma bola de cristal que possa lhe dizer como o futuro há de julgar Marcola do PCC, mas, se me basear no passado, em Lampião, posso afirmar que o antagonismo se manterá vivo por muito tempo:
odiado, pois sob o ponto de vista da lei, Marcola é, assim como Virgulino foi, um bandido, um criminoso sanguinário que matava e fazia negociatas sujas com políticos; e
amado, pois sob o ponto de vista político, Marcola é, assim como Virgulino foi, uma dessas pessoas que não aceitava o modelo oligárquico, no qual uma minoria privilegiada tem acesso aos bens de consumo e a ampla maioria da população vive disputando um espaço de sol na miséria.
Jesuíno Alves de Melo Calado, o cangaceiro Jesuíno Brilhante, buscava contestar o sistema da forma como ele estava montado, ao contrário de Lampião e Marcola, que se integraram, cada um de seu jeito, ao sistema, se aliando a políticos conservadores.
Esses ícones do Estado paralelo tiveram suas vidas esmiuçadas por dezenas de estudiosos em milhares de trabalhos acadêmicos e audiovisuais. No entanto não há consenso, alguns refletiram a visão daqueles que combateram o cangaço ou que tiveram seus antepassados mortos ou saqueados por eles; já outros, se basearam nos depoimentos do povo que convivia com eles.
Talvez nunca saberemos, afinal, se era um deus ou um diabo que reinava na terra do sol, assim como não sabemos, hoje, como serão vistos, no futuro, aqueles que reinam nas periferias, nos morros ou dentro do Sistema Prisional.
Qualquer grande líder político, militar ou religioso desperta essa reação de amor e ódio, e, se fizermos uma análise profunda, encontraremos grandes razões para amá-los e odiá-los ― não foi diferente com Lampião e Jesuíno Brilhante, e não será diferente com Marcola.
O Estado como controlador da violência
Lampião comandou seu homens com pouca resistência no período que sucedeu a Proclamação da República, em 1888, e Marcola viu o fortalecimento de sua organização após a derrubada do Regime Militar e com a Promulgação da Constituição Cidadã de 1988.
Espécies nocivas que frequentam o ambiente se proliferam com rapidez pela falta de predadores naturais, e assim o cangaço e as facções criminosas se fortaleceram na ausência do Estado nos presídios, nas periferias e no sertão nordestino.
Assim como no passado, o medo impera naqueles que comandam os diversos níveis de poder mas não temem a criminalidade tanto quanto temem a eles mesmos:
Os fazendeiros e políticos locais do século XIX e o governo federal temiam a política dos governadores. Um século e meio após, se um candidato à presidência propor a federalização ou a municipalização da segurança pública ― os governadores pirariam!
Dentro dessa realidade, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) não consegue ser implementado deixando uma via aberta e bem pavimentada para as organizações criminosas enquanto os diversos entes federativos lutam pelo poder.
Getúlio Vargas para acabar com o PCC?
Até hoje, não há dados confiáveis sobre as questões de Segurança Pública. Cada estado é responsável pelo cadastramento de seus cidadãos e dos criminosos, através da emissão de documentos, e estes não estão disponíveis em tempo real.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não aposta em um novo salvador da pátria e explica suas razões:
No passado também foi assim, pelo menos até que chegou o cara, o salvador da pátria! Getúlio Vargas derruba o poder dos governadores e dos senhores locais e encerra a era de ouro do cangaço.
Talvez apareça um novo messias para nos salvar, talvez o Sistema Único de Segurança Pública dê mais um passo em seu lento deslocamento em direção ao aperfeiçoamento, ou talvez deixemos como está para ver como é que fica.
Pedro Rodrigues da Silva, o Pedrinho Matador, conhece o sistema prisional de São Paulo como poucos. Ele ficou sem ver a rua de 1973 até 2007 e de 2011 até 2018 — viveu mais de 40 atrás das grades e por lá, ele conta que viu mais de 200 presos serem mortos enquanto esteve por lá, sendo que mais de 100 foram ele mesmo que matou.
Viveu no cárcere no tempo do Regime Militar, da redemocratização e dos governos com leve viés progressista, mas mudança mesmo, houve quando a facção paulista despontou como hegemônica, acabando com as diversas gangs e grupos dentro das cadeias e presídios.
Sobre o Primeiro Comando da Capital ele afirmou durante uma entrevista:
“Fui [convidado a entrar no PCC], mas não entrei. Ali é o seguinte: depois que surgiu o partido, você vê que a cadeia mudou. Não morre ninguém porque o partido não deixa. É paz. Paz para a Justiça ver. Se começa uma briga, eles seguram. Eles também ajudam quem sai, arrumam trabalho.”
A sociedade vive momentos críticos, o que existe de pior em nós está tomando as ruas e os Justiceiros da Fronteira estão aí para provar.
Não presto homenagens a criminosos mortos.
Presto solidariedade às famílias enlutadas, cujos filhos foram engolidos pela podridão que nós deixamos escapar das fossas mais profundas de nossa sociedade.
Descansem em paz guerreiros, torturados e mortos na covardia. Fiquem na certeza que a justiça se fará, porque Deus é fiel e a Família é forte.
Descansem em paz você que está indiferente ou festejando a morte dos garotos e das garotas na fronteira achando que não é um problema seu.
Descansemos em paz todos nós enquanto podemos — com a mente tranquila dos que ignoram a chegada das grandes tempestades.
O mundo do crime não é para os fracos.
Há dez anos, eu e o Primeiro Comando da Capital andamos lado a lado — ele no lado dele, eu no meu lado; ele observa de perto minha caminhada, eu observo de perto a caminhada dele.
Nesses dez anos, assisti muita morte cruel. Vi execuções ordenadas pelo Tribunal do Crime do PCC, mortes em invasões de comunidades rivais e durante operações de assaltos — geralmente chegavam gravadas e ao vivo.
O mundo do crime não é para os fracos, mas o mundo do crime tem sua ética.
A mais cruel de todas havia sido até ontem a decapitação de um integrante do Comando Vermelho com um facão sem fio — uma morte lenta e dolorosa em uma guerra entre facções onde quem entra sabe que é para matar ou morrer.
Considero insana essa guerra e desajustados os integrantes das organizações criminosas beligerantes, no entanto, entendo que ambos os lados consideram uma guerra justa pelo domínio de territórios, mercados e pela própria sobrevivência.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética, mas e “as pessoas de bem”?
Ontem fui surpreendido com a mais cruel e insana de todas as mortes, executada por sádicos que antes da era Bolsonaro se limitavam a se masturbar assistindo filmes de morte em seus computadores e torturar animais domésticos, mas que agora ganharam as ruas.
Os “Justiceiros de la Frontera” ou os “Justiceiros da Fronteira” cortam um garoto ainda vivo, membro por membro, enquanto o jovem grita desesperado, nu, preso por correntes no pescoço, mãos amarradas nas costas e as pernas seguras cada uma por um homem.
A captura e execução não condiz com o modus operandi das milícias e das organizações criminais brasileiras, mais parecendo cenas de filmes de sadismo trashs que os “cidadãos de bens” assistem excitados em suas alcovas.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética, mas as “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro?
De dentro de um presídio no Paraguai me chega a informação de que o boato que corre por trás das muralhas é que esses dementes são patrocinados por comerciantes dos dois lados da fronteira e que suas ações contam com a participação ou facilitação de policiais civis do Mato Grosso do Sul.
Confio que a Polícia Civil do Mato Grosso do Sul, que está investigando os assassinatos dos Justiceiros, e que está realmente empenhada em descobrir os culpados, assim como, no passado, confiei que o delegado Fleury elucidaria as execuções.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética, mas as “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro, estarão dispostas a entrar nesse mundo?
O Secretário de Segurança do Mato Grosso do Sul Antonio Videira demonstrou que a insanidade do presidente Bolsonaro apodreceu a alma de nossa sociedade, ao relativizar a importância da vida, da ação do Estado e da Justiça, ao mesmo tempo em que ressaltou a importância do patrimônio privado:
“Os crimes contra o patrimônio causam clamor público e enchem a região de polícia e isso atrapalha o negócio deles (traficantes)”.
Videira age da mesma forma que o presidente quando este grava um vídeo condenando a vacina e o isolamento social e depois grava outro vídeo dizendo que nunca foi contra a vacina e o isolamento social e que a culpa é do Supremo que não deixou agir.
Videira sabe que as facções brasileiras e os clã paraguaios não mandam recado em bilhete para outros criminosos, essa é uma ação típica da milícia, mas com uma característica única que só poderia ter sido formada dentro do nosso caldo social:
Videira sabe que traficantes ligados ao Primeiro Comando da Capital estão entre os torturados e mortos.
Videira sabe que está mentindo, mas ao que faz parecer, quer proteger os comerciantes, agentes públicos, e filhotes sádicos da elite que estariam envolvidos nos crimes.
“Cidadãos de Bens” armados, com dinheiro e poder, deixam aflorar o sadismo e a podridão que antes tinham que conter, apoiados por uma mídia muitas vezes manifestamente favorável aos justiçamentos seletivos, com a participação ou complacência dos agentes públicos de Segurança Pública e apoiados por parte ensandecida da população e empoderatos todos pelo discurso do presidente da República e seus asseclas.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética. As “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro estão a entrar para esse mundo, mas aguentarão as consequências?
Antigamente era comum ouvir de um criminoso: “o senhor está fazendo o seu serviço”.
Em maio de 2006 o mais poderoso estado do Brasil parou frente ao poder do Primeiro Comando da Capital, que comandou ataques em todo o estado, matando mais de 59 agentes públicos: policiais, bombeiros, guardas civis municipais e agentes penitenciários
Em torno de mil pessoas, incluindo: agentes públicos, criminosos e civis que nada tinham a ver com o assunto. Quase todas mortas por policiais em serviço ou em horário de folga.
Pouco se fala sobre a causa dessa chacina: a política de justiçamento e de extorsão por parte de agentes da polícia com a complacência da imprensa, das classes políticas, do Ministério Público e da Justiça — acreditaram que não deveria haver lei para os fora da lei.
O caso Castelinho de 2002 foi emblemático: a polícia infiltrou um informante dentro de um grupo criminoso, criou uma falsa oportunidade de assalto, incentivou a reunião de criminosos para a falsa ação, emboscaram e mataram doze integrantes da facção PCC.
Hoje é difícil ouvir de um criminoso: “o senhor está fazendo o seu serviço” — quebrou-se uma ética que existia entre o mundo do crime e as forças de segurança.
A Polícia Militar de São Paulo sentiu isso na prática em 2011 e 2012 quando voltou a ser atacada pela organização criminosa paulista.
Mês passado em São Carlos, foi condenado a 16 anos de prisão um dos últimos integrantes do Primeiro Comando da Capital que ainda aguardavam julgamento pelas mortes de policiais naqueles dois anos — segundo a BBC Brasil, os dados demonstram que a Força Tática e a Rota receberam o recado e diminuíram a taxa de letalidade a partir de 2013.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética. As “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro estão a entrar para esse mundo, mas aguentarão as consequências? Quantos morrerão em uma nova guerra e a quem ela interessa?
Anabel era uma garota que não tinha nenhum envolvimento com o crime, ao contrário de seu namorado o Mateo, e os jovens namorados foram mortos em uma choperia em Pedro Juan Caballero — outros garotos mortos, até para desmentir a ridícula versão do Secretário de Segurança Antônio Videira, não eram assaltantes, mas sim traficantes.
Eu já assisti dezenas de punições de ladrões que roubam em comunidade e são executadas pelo PCC: são espancamentos e muito raramente um tiro ou uma facada no pé ou nos dedos — jamais tortura e execução, e os executores citam o nome da facção.
A população que aplaude e se excita em seus sofás assistindo às mortes pela tv ou em sua segurança pelos celulares e computadores está alimentando um monstro confiando que o mal não irá atingi-las.
Se a retaliação vier, como sempre será sobre as forças de seguranças, principalmente policiais civis e guardas civis municipais que estão na linha de frente e não aqueles que se trancam dentro das delegacias e por trás dos muros de suas residências e comércios.
Uma guerra entre as forças de segurança e o Primeiro Comando da Capital pode interessar justamente a Bolsonaro e os criminosos que o acompanham e sustentam, mas não às centenas famílias de moleques, garotas e agentes públicos que tombarão nas ruas.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética. As “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro estão a entrar para esse mundo, mas aguentarão as consequências? Quantos morrerão em uma nova guerra e a quem ela interessa? Não a mim, não a você e muito menos a todas as famílias enlutadas pela covardia e a podridão dessa onda que está a nos afogar.
A confusa configuração do crime organizado no estado do Espírito Santo é consequência da política carcerária do governador Renato Casagrande.
Se você entende o que se passa no estado do Espírito Santo, só agradeço se me procurar no privado para contar, mas acho que nem quem é do mundo do crime consegue entender o que se passa na mente e nos corações dos crias capixabas.
As repórteres Kananda Natielly e Taynara Nascimento do Tribunaonline entrevistaram diversos especialistas e publicaram um artigo repleto de contradições, não por incapacidade ou desleixo, mas porque cada entrevistado apresentou um quadro diferente.
Eu só sei que o sangue continua correndo nas ruas do estado, como aconteceu há poucos dias, quando dois homens em uma moto executaram um rapaz e feriram uma mulher que estavam em um ponto conhecido de tráfico em Vila Velha, e assim como ele, já morreram uns 50 nas disputas sobre o domínio dos pontos de tráfico em tempos recentes.
Vila Velha resume a zona que é o crime organizado no Espírito Santo
Até aí parece ser uma disputa fácil de entender e similar ao que ocorre em outros tantos recantos do Brasil: PCC e CV disputando espaço com seus aliados locais. Só que não! Como tudo é confuso no Espírito Santo esse caso não poderia ser diferente:
Em 2019, uma das principais lideranças do Ulysses Guimarães e do 23 de Maio, seria Catraca da Gangue da Pracinha, como é conhecido Samuel Gonçalves Rodrigues, que era do Comando Vermelho e trocou a camisa para correr pelo Primeiro Comando da Capital.
Após sua prisão, as mortes pararam por um tempo, mas seus domínios que eram com ele do CV e passaram para o PCC, e agora voltaram para o CV sendo disputados pelo PCC e pelo PCV — simples para você? Para mim não, mas pode ficar ainda mais confuso:
Gangue da Pracinha do Catraca rachou após sua prisão. Marcola, como era conhecido Marcos Vinicius Boaventura, gerente de Catraca no Ulysses Guimarães, assim como os outros que não quiseram voltar a vestir a camisa do CV foram expulsos da quebrada.
Como zona pouca é bobagem: tem o Terceiro Comando Puro
Marcola se mocozou no Terra Vermelha do Terceiro Comando Puro (TCP), mesmo Catraca sendo do PCC, e de lá fez ataques aos antigos aliados no Ulysses Guimarães e Morada da Barra, tendo matado em uma única noite quatro integrantes da Gangue da Pracinha, mas como acabou preso por pelo menos uma das mortes, não conseguiu retomar as biqueiras que permaneceram ligadas ao Comando Vermelho.
No Centro de Vila Velha, o Morro da Penha e o Morro do Cobi de Baixo estão sob o domínio do Primeiro Comando de Vitória, que parece ter uma convivência pacífica e comercial com os crias do Comando Vermelho.
Colado ao norte de Vila Velha fica o Porto Santana, também conhecido como Morro do Quiabo no município de Cariacica, local conhecido como um importante centro de distribuição de drogas e disputado à sangue pelos diversos grupos criminosos.
O Porto de Santana está nas mãos do Terceiro Comando Puro (TCP), facção carioca aliada ao Primeiro Comando da Capital de São Paulo que é aliado do Primeiro Comando de Vitória que disputa com o Terceiro Comando Puro — vixi, olha a zona!!!
Se em Vila Velha TCP e PCV disputam, em Vitória o Terceiro Comando Puro está em várias comunidades, entre elas a de Itararé, onde TCP fecha com o TCV.
“Divide et impera” — separar os inimigos para governar
Muito se discute se a separação dos presos por facção dentro do sistema penitenciário é a melhor opção. Os defensores da secção apontam algumas vantagens na adoção desse procedimento:
redução da violência dos conflitos entre os aprisionados;
redução das mortes violentas no sistema;
menor risco para os agentes prisionais por contar com uma pacificação e hierarquização da comunidade carcerária; e
dividir para governar — a divisão impede que os diversos grupos formem coalizões para agir no mundo do crime fora das muralhas.
Estados como São Paulo e Mato Grosso do Sul fazem uma rigorosa triagem dos presos, colocando-os cada qual em seus grupos facciosos, medida tomada após a disseminação do Primeiro Comando da Capital pelo sistema prisional.
Criando e disseminando a semente do crime
Até meados da década de 1980, os cárceres paulistas eram entregues aos grupos que se impunham seu domínio pela força e violência — era comum cortar cabeças de presos “sorteados” para protestar contra a superlotação das carceragens, e o sorteio era feito entre os que não faziam parte dos grupos.
Já na época, haviam os que defendiam que esse grupo deveria ficar em uma única unidade prisional, no entanto, o grupo majoritário defendia que o Estado não deveria reconhecer “as autodenominadas facções dos presos”.
E assim foi feito, e as constantes transferências espalharam a filosofia do Primeiro Comando da Capital para todas as unidades do estado de São Paulo, e quando o governo viu o erro, em maio de 2006, já era tarde e o PCC paralisou todo o estado e o deixou refém da criminalidade.
Tudo Junto e Meio Misturado sob o governo de Renato Casagrande do Espírito Santo
Hoje, vários estados adotam a separação, no entanto outros optam por manter os diversos grupos criminosos sob o mesmo teto, alegando que o Estado não pode reconhecer grupos criminosos e que ao concentrar os integrantes em uma unidade os administradores ficam mais vulneráveis às pressões internas.
Todos nós conhecemos o resultado dessa opção.
Os noticiários internacionais, que raramente lembram do Brasil, expuseram o fracasso dessa política prisional tupiniquim adotada no Amazonas e no Rio Grande do Norte após os massacres do COMPAJ e de Alcaçuz e a desmoralização de seus governos.
O estado do Espírito Santo na administração do governador Renato Casagrande segue pelo mesmo caminho:
“Não realiza a separação de internos em galerias ou unidades por auto declaração de participação em facções ou organizações criminosas”
“Lá tá todo mundo junto, tá ligado? Mas é mais essa parada, PCV, PCC, Primeiro Comando do Estado, tem essas paradas todas, fica todo mundo junto desembolando os cauôs, desembolando as tretas.”
me conta um conhecido de dentro do sistema capixaba
A experiência mostra que a mistureba de presos só pode dar ruim, no entanto, esse caos instalado propositalmente pelo governo dentro do sistema prisional capixaba parece que está conseguindo criar um padrão único no estado.
A pacificação dentro dos presídios não está acontecendo por ação ou eficiência do poder público, mas pela negociação caso a caso dentro dos diversos grupos criminosos que estão por trás das muralhas.
Essas negociações entre os crias das diversas facções do crime no dia a dia dentro do sistema prisional se reflete nas quebradas com parcerias de negócios sendo fechados com grupos que, em outros estados, estariam se matando.
Para manter a paz dentro dos presídios, as tretas da rua passam a ser resolvidas nas ruas de forma pontual sem comprometer as organizações criminosas — o que explicaria em parte porque o caso do Catraca e Marcola não espalhou a guerra para todo o município, estado e para dentro do sistema prisional.
Uma guerra entre facções pode empilhar corpos nas periferias e presídios, jogando as nuvens a taxa de homicídios a 71,8 (Roraima), 54 (Ceará) e 52,5 (Rio Grande do Norte), e no outro extremo com a pacificação derrubar essas taxas a 6,5 (São Paulo), já o Espírito Santo ficou com 24,8 pois não tem uma verdadeira guerra entre facções, mas possui disputas individuais.
Dúvidas que não querem se calar
O caso de Vila Velha e Cariacica pode indicar que a política prisional do governo do estado do Espírito Santo do governador Renato Casagrande está perdendo o efeito de unir os grupos criminosos rivais?
Se assim for, haverá mais de mortes nas periferias ou as organizações criminosas estabelecerão novos e mais amplos acordos de paz e cooperação?
O governo está gestando uma nova geração de criminosos que correrão juntos, mesmo que divididos?
Análise baseada no seminário promovido pelo site InSight Crime sobre expansão do Primeiro Comando da Capital e o mercado transnacional de drogas.
Entendendo o crime transnacional a partir da facção PCC 1533
Pesquisadores do InSight Crime analisaram a mecânica do crime organizado transnacional no Cone Sul através do processo de expansão da facção criminosa brasileira Primeiro Comando da Capital.
Com mais de 10 mil integrantes só no estado de São Paulo e quase três décadas de história, a facção paulista gere a vida dentro das muralhas, assim como, a partir de suas biqueiras, as comunidades periféricas ou marginalizadas.
Somando negociação e violência extrema, a organização paulatinamente chegou a todos os recantos do país, com maior ou menor presença, de acordo com a realidade local e de seus interesses estratégicos.
Assim, o Primeiro Comando da Capital, passou de coadjuvante a coordenador do mundo do crime: criando regras, harmonizando desafetos, aplicando a justiça, e construindo um imaginário na população encarcerada e periférica.
Facção PCC 1533: como componente da equação
É fato que a violência dispara quando a facção disputa um território, no entanto, também é fato que os índices de homicídio desabam quando ela consolida sua presença:
São Paulo: com a hegemonia da organização criminosa, o número de homicídios caiu paulatinamente 76,66% a partir de 1999, sendo hoje o estado mais seguro do Brasil para se viver;
Ceará: o governo estadual atribuiu a queda dos homicídios dos anos de 2015 e 2016 à sua política de Segurança Pública, no entanto foi o resultado da pacificação conquistada pela facção que fechou parceria com grupos rivais e harmonizou as gangues locais.
Ceará: Em 2017, com o fim dos acordos de paz entre a facção paulista com a Família do Norte (FDN) e o Comando Vermelho (CV), o estado viu o número de assassinatos dispararem 48,73%, comprovando que a pacificação não havia sido uma conquista das forças de segurança pública.
Com o fim dos acordos de paz entre o Primeiro Comando da Capital com o Comando Vermelho, e deste com a Família do Norte, rios de sangue correram de norte a sul do Brasil: dentro das trancas, nas ruas, e quebradas.
gráfico com a taxa de mortalidade: Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro
Facção PCC 1533: a estratégica política de cooptação
O interesse por um território pode ser local, para garantir o fluxo em uma única biqueira, mas também pode ser estratégico, para dominar ou fortalecer sua presença nas regiões produtoras de drogas e nas rotas de distribuição.
A política de cooptação que tenderia a fragmentar a facção, então, segundo Camila Nunes Dias, a facção montou “uma estrutura horizontal flexível e muito forte, conseguindo cadastrar e vincular seus integrantes”.
Os novos aliados cooptados incorporam ao leque do Primeiro Comando da Capital: produtos, serviços, estratégias, contatos e conhecimentos específicos do submundo local.
Não faziam parte do leque original de produtos e serviços do PCC: contrabando de cigarros, prostituição, adulteração de combustíveis, participação em empresas e licitações públicas, entre outros — o contrabando de cigarro hoje é um dos braços mais rentáveis da facção.
E assim, as creches da prefeitura de São Paulo, a maior cidade da América Latina, acabam sendo usadas para lavar o dinheiro da organização criminosa.
A cooptação é usada tanto para o domínio de uma biqueira em uma vila amazônica, quanto para a criação de rotas transoceânicas — como nos casos de: Fuminho (Gilberto Aparecido dos Santos) e Gegê do Mangue (Rogério Jeremias de Simone).
Facção PCC 1533: Fuminho e Gegê do Mangue
Fuminho que já havia atuado na Bolívia junto aos produtores de coca, e na melhoria das linhas de escoamento para o Brasil, acabou preso em Moçambique quando tecia parceria entre o PCC com grupos criminosos do sudeste africano.
Moçambique não foi escolhido apenas pelo idioma, mas por sua posição estratégica — uma semente bem plantada naquele solo fértil, se devidamente regada, permitiria ao Primeiro Comando da Capital colher bons frutos:
As organizações criminosas moçambicanas atuam no tráfico regional de heroína e de armas, fazendo a ligação com as organizações asiáticas que atuam nos 47 países que integram a zona de influência do Oceano Índico.
O eixo africano permitiria ao Primeiro Comando da Capital entregar diretamente para clientes europeus, evitando os portos da Bélgica, Holanda e Itália, onde é necessário pagar o agenciamento cobrado pelos cartéis locais que gira em torno de 40% do valor da mercadoria.
Não se pode afirmar com certeza quando o Primeiro Comando da Capital iniciou suas operações por lá, mas se acredita que tenha montado bases tanto em Moçambique quanto na África do Sul, e que mantenha laços comerciais desde 2012, e o Hezbollah tem uma presença importante naquelas bandas:
Estudando esse caso, Camila Nunes Dias chamou minha atenção para a dificuldade de se entender a estrutura da facção: Fuminho, liderança inconteste do grupo criminoso, sequer é um membro batizado da organização criminosa.
Teoricamente:
podendo fazer negócios particulares com grupos inimigos;
ficando nebulosa sua colaboração para o caixa da organização;
Gegê do Mangue, batizado na facção, organizou rotas de distribuição da Bolívia para o Brasil, e foi morto no Ceará onde negociava com grupos locais a estruturação e segurança dos entrepostos e portos para o despacho de drogas para as organizações criminosas européias.
Facção PCC 1533: estruturando a Rota Caipira
O Brasil se tornou o segundo maior mercado do mundo depois dos Estados Unidos, com dois milhões e oitocentos mil consumidores, obrigando o Primeiro Comando da Capital a desenvolver uma cadeia logística que garantisse o fluxo constante, seguro e em grande escala do produto.
Para isso, lideranças da organização criminosa seguiram para Bolívia, Colômbia e Paraguai, para estruturar um sistema de parcerias interligando: plantadores de coca, refinadores, distribuidores autônomos, varejistas, e exportadores.
Quando a liderança da facção PCC 1533 seguiu para a região, já haviam células atuando em toda a extensão da Rota Caipira: Bolívia, Paraguai, Mato Grosso do Sul e Paraná — tendo lá chegado a partir dos presídios.
Por anos, PCCs foram aprisionados ou transferidos para essas regiões, difundindo a “filosofia do partido” nos presídios, e suas sementes ao serem libertadas, se espalhavam para as comunidades do entorno formando essas células por toda a extensão da Rota.
Facção PCC 1533: encontrando seu limite
O Primeiro Comando da Capital distribui 60% da cannabis produzida em solo paraguaio em uma área estimada entre 7 e 20 mil hectares (1.340 municípios brasileiros tem uma área de até 20 ha.), produzindo entre 15 e 30 mil toneladas por ano, ocupando duas dezenas de milhares de trabalhadores rurais: da pequena agricultura familiar aos latifúndios do agronegócio.
A organização criminosa atravessa com facilidade os ilícitos através dos 800 quilómetros da fronteira do Brasil com o Paraguai, utilizando-se para o transporte de empreendedores individuais ou coletivos autônomos — entre 2014 e 2021 foram apreendidos 48,42 toneladas de maconha, portanto, vazou um mínimo estimado de 90 mil toneladas.
A facção optou por não possuir uma estrutura logística própria, terceirizando como empreendimentos individuais ou coletivos autônomos: de mochileiros à caminhões e aviões (que em época de Covid tem ganhado competitividade).
Vinícius Madureira salienta que foi a partir dos presídios que o PCCdominou este que é o maior corredor de escoamento de drogas e ilícitos do Cone Sul — o Rio Grande do Sul e o Uruguai não estão integrados na rota principal por serem regiões onde o Primeiro Comando da Capital ainda enfrenta resistência.
O PCC não venceu a resistência dos diversos e consolidados grupos que atuam nos presídios gaúchos, e assim, não obteve o controle das comunidades e rotas, se mantendo, segundo Vinícius Madureira, apenas “como fornecedor de drogas e facilitador do desenrolar da mecânica criminal na região”.
Essa miríade de facções, grupos e bondes, somados à facilidade de acesso por qualquer criminoso independente aos fornecedores da Tríplice Fronteira, levaram a facção paulista a optar pela cooptação dos grupos locais para concorrer do mercadogaúcho e não a ação das forças de Segurança Pública do estado.
No Uruguai a presença paulista, segundo Vinícius Madureira, é tênue também devido aos grupos locais, mas essa informação destoa de um conteúdo do próprio site InSight Crime:
Vinícius Madureira argumenta que tanto para driblar o cerco policial, quanto por questões estratégicas, o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, buscam ampliar um corredor alternativo: a Rota do Solimões.
O PCC para obter o controle da Rota do Solimõesestruturou núcleos próprios na região Norte e Nordeste integrados a grupos criminosos locais como piratas ribeirinhos, facções e bondes.
A facção conta com aliados poderosos como o Bonde dos 13, mas tem dificuldade de dominar os quase 4 milhões de quilômetros quadrados, área equivalente aos territórios da Índia e do Paquistão somados, com baixa densidade demográfica e precária infraestrutura de transportes e comunicação.
A principal estratégia adotada pelos paulistas é estrangular as fontes de insumos da Família do Norte e do Comando Vermelho, descapitalizando-os, e assim, criando disputas internas que facilitam a tomada de suas quebradas pelas suas células ou aliados locais.
Atualmente, o PCC busca os narcóticos diretamente dos produtores rurais ou seus distribuidores no Peru, na Colômbia e na Bolívia, e entrega o produto acabado para despacho nos portos com destino à Europa e à África, alimentando no caminho o mercado interno do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Essa disputa de mercado é a razão dos massacres ocorridos nos presídios do Norte e Nordeste do país: COMPAJ do Amazonas, Monte Cristo de Roraima, Alcaçuz do Rio Grande do Norte, Urso Branco em Rondônia, Altamira no Pará, além de mortes nas cadeias, nos centro sócio-educativos e nas quebradas.
A oposição de direita que afirma que o presidente Luis Arce deveria soicitar o apoio da Drug Control Administration (DEA), no entanto o vice-ministro de Substâncias Controladas, Jaime Mamani Espíndola, acredita que seja apenas uma jogada política de grupos políticos visando levar terror para vender uma solução. Dados do Google Trends demonstram que a população não tem levado em conta essa narrativa.
Facção PCC 1533: expansão estratégica
Sem grupos capazes de lhe fazer frente, o PCC cooptou ou eliminou os reticentes, tornando-se hegemônico no tráfico de grandes quantidades de drogas e outros ilícitos — dominando com certa tranquilidade as rotas transnacionais do norte ao sul do país.
Estima-se que apenas a cannabis que circula no Cone Sul, se legalizada, geraria 10 bilhões de dólares anuais — daí o interesse dos grupos criminosos pelo domínio das rotas e de sua não legalização.
Apesar de sua força e influência, a organização paulista sofre oposição do Comando Vermelho e de grupos locais nos estados e países fronteiriços, como o Clan Rotela no Paraguai — havendo uma relação de rivais.
O avanço da facção PCC nos últimos anos foi impulsionado pela criação dessa rede para o atendimento do mercado interno ao mesmo tempo em que o mercado europeu de cocaína se expandia.
Para suprir o aumento do consumo na Europa, a ‘Ndrangheta e outras organizações criminosas europeias buscaram parceiros comerciais estruturados e capazes de garantir o suprimento dessa demanda.
“Os corretores da máfia são tão poderosos que lidam diretamente com o PCC. Traficando da Colômbia, da Bolívia e do Peru, passando pelo Paraguai como rota de trânsito.” — Zully Rolón, ministro da Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai
A parceria entre as duas organizações criminosas possibilitou que a ‘Ndrangheta passasse a hegemonia do tráfico de drogas da América para a Europa com o dominando 80% do fluxo.
Um dos esquemas, tinha como base as esteiras do Terminal do Aeroporto de Guarulhos: as bolsas seguiam pelas esteiras rolantes até a área restrita, onde funcionários aliciados pelo Primeiro Comando da Capital recebiam dos comparsas as fotos com as imagens das malas recheadas com drogas, e as embarcavam para Portugal, França e Holanda, na Europa, e também para Johannesburgo, na África do Sul.
O aquecimento do mercado interno aqui e na Europa deslocou o eixo do tráfico do hemisfério norte para o sul, onde a capacidade investigativa policial e o custo de transporte e produção, que já era menor, se amortizam.
Representantes do Primeiro Comando da Capital na Europa fizeram o “meio do campo” com as organizações criminosas europeias, optando por não atuar diretamente na distribuição para aquele mercado.
Fuminho, segundo Vinícius Madureira, seria um desses corretores autônomos (brokers) que agem em pequenos grupos com grande especialidade e capacidade de fechar grandes negócios.
Facção PCC 1533: o aliciamento das forças públicas
A relação entre as autoridades policiais e o Primeiro Comando da Capital pode se dar através da corrupção ordinária em uma biqueira ou delegacia, durante um flagrante ou de forma contínua com o pagamento do “arrego”.
Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2020 nos países com maior influência da facção Primeiro Comando da Capital:
No entanto, também pode ser coletivo, como nos lembra Steven Dudley lembrando o caso de 2017 onde dezenas de policiais civis do Vale do Paraíba gerenciavam indiretamente através da facção PCC os negócios ilícitos em São José dos Campos.
Dois anos depois desse caso, provou-se que 53 policiais militares da Força Tática do 22º Batalhão de São Paulo estavam a soldo da facção PCC para manter a paz entre as biqueiras e garantir a segurança do comércio na região.
Em todas as regiões é usual a cooptação de policiais para a tomada ou compra de pontos de drogas de concorrentes com a prisão dos donos ou gerentes das biqueiras ou sufocando o acesso dos usuários à elas.
Facção PCC 1533: a mão de obra especializada
A participação de militares, policiais e agentes prisionais na facção é conhecida, mas é pouco explorado o trabalho de dezenas de milhares de outros profissionais de diversas nacionalidades.
Além dos agentes públicos, a logística inclui de norte a sul: transportadoras, aviões e helicópteros próprios ou terceirizados, assim como uma malha de contatos em empresas de transportes ferroviários, aeroportuários, marítimos e fluviais e em aduanas, distribuidoras e entrepostos.
… ou quem sabe coloque até drogas para ser transportado em avião presidencial.
A organização gere US $150 milhões por ano, utilizando-se para lavar o dinheiro: postos de combustíveis, redes de alimentos industriais ou de tratamento dentário, buffets para festas infantis, clubes de futebol, entre outros pequenos negócios.
Grandes valores seguem para as mãos de profissionais como o fazendeiro sul-mato-grossense Antonio Joaquim da Mota que tinha negócios com Sérgio de Arruda Quintiliano Neto, o PCC Minotauro da região da Tríplice Aliança.
Já o repórter Allan de Abreu conta que doleiros como Dalton Baptista Neman faziam uma operação casada para lavar o dinheiro da facção: um comerciante paga um fornecedor na China em Dólar convertido de criptomoeda disponibilizada por um comprador de cocaína na Europa, daí, esse comerciante recebe pela venda da mercadoria vinda da China no Brasil em Reais e então paga o traficante brasileiro que vendeu a droga na Europa.
O chinês Jiamin Zhang se estabelecer no Brás no centro de São Paulo e é o líder de um esquema de lavagem de dinheiro com o uso de criptomoedas que pode ter movimentado bilhões de reais. Ele é acusado de trazer ao Brasil toneladas de cocaína vindas da Colômbia, Bolívia e Paraguai. Do território brasileiro, a droga era enviada para a Europa por portos da região sul do país.
No entanto, as criptomoedas também são utilizadas para lavagem do dinheiro doméstico, como se comprovou com a Operação Mamma Mia da Polícia Federal e da Receita Federal ao investigar uma pizzaria comandada pelos integrantes do Primeiro Comando da Capital que além de massas e queijo para pizzas, comprava criptomoedas e ouro para lavar dinheiro e financiar atividades da facção. — Lucas Caram para o Cointelegraph
Facção PCC 1533: e a escravização sexual nos presídios
O crescimento e a consolidação da facção paulista são consequências visíveis do colapso do sistema prisional brasileiro, que em nove anos quadruplicou a população carcerária.
Em seus pátios, corredores e celas, a ética do mundo do crime foi forjada e implantada pela facção 1533, permitindo o cumprimento da pena com certa dignidade, o que nunca antes fora garantido pelo Estado brasileiro:
Um garoto universitário branco com boa aparência, que entrasse em um presídio até 1996, antes do PCC, era negociado pelo carcereiro ou outro preso e todo mundo sabia a quem ele pertenceria no xadrez.
Pedro Rodrigues da Silva, o Pedrinho Matador, conhece o sistema prisional de São Paulo como poucos. Ele ficou sem ver a rua de 1973 até 2007 e de 2011 até 2018 — viveu mais de 40 atrás das grades e por lá, ele conta que viu mais de 200 presos serem mortos enquanto esteve por lá, sendo que mais de 100 foram ele mesmo que matou.
Viveu no cárcere no tempo do Regime Militar, da redemocratização e dos governos com leve viés progressista, mas mudança mesmo, houve quando a facção paulista despontou como hegemônica, acabando com as diversas gangs e grupos dentro das cadeias e presídios.
Sobre o Primeiro Comando da Capital ele afirmou durante uma entrevista:
“Fui [convidado a entrar no PCC], mas não entrei. Ali é o seguinte: depois que surgiu o partido, você vê que a cadeia mudou. Não morre ninguém porque o partido não deixa. É paz. Paz para a Justiça ver. Se começa uma briga, eles seguram. Eles também ajudam quem sai, arrumam trabalho.”
O Primeiro Comando da Capital impôs a regra de correr pelo lado certo do lado errado da vida, conquistando o respeito do mundo do crime, abrindo caminho para doutrinar cada um dos ingressos no sistema prisional.
A avalanche de aprisionamentos tornou-se uma avalanche de convertidos e replicantes do discurso e da filosofia da facção.
Ninguém é obrigado a se submeter à facção, a servidão é voluntária, e, como descrito por Etienne de La Boétie: ao se colocarem voluntariamente em condição subserviente, fortalecem seus dominadores, que dominarão então mais, realimentando e fortalecendo o processo.
Como Sísifo, condenado a empurrar uma pedra até ao cimo de um monte, e ao chegar vê-la novamente cair montanha abaixo e repetindo esse trabalho por toda a eternidade, o PCC criou e foi criado por um círculo vicioso:
ao oferecer ao encarcerado segurança real e imediata na tranca, gera a perspectiva de que quando livre, ele trabalhará no rendoso mundo do crime para a organização; e
ao oferecer ao criminoso trabalho real e imediato na rua, gera a perspectiva de que quando preso, ele será respeitado dentro das muralhas pelo mundo do crime por pertencer a organização.
O PCC é poderoso por que impõe as regras, ou o PCC impõe as regras por que é poderoso?
Stefen Dudley ressalta que o Primeiro Comando da Capital é uma exceção nas Américas, pois apesar de haverem outros grupos criminosos que atuam dentro dos presídios e nas ruas, nenhum tem a sua magnitude, e cita como exemplo:
MS-13: presente em 6 países, atua com uma estrutura horizontal em células relativamente independentes agregadas torno de regras conhecidas e uma marca forte, mas não tem atuação transnacional; e
Barrio Azteca: nascida no sistema prisional norte-americano, tem uma atuação forte na região fronteiriça com o México em parceria com o Cartel de Juarez, mas tem uma atuação pífia no interior do país.
Facção PCC 1533: criando um atalho para os EUA
O Primeiro Comando da Capital estaria expandindo suas atividades não só para países vizinhos, existiriam tentativas de se associar ao MS-13 de El Salvador, para conseguir uma porta de entrada para o mercado americano via América Central, hoje, a droga brasileira vai primeiro para a África para depois seguir para os Estados Unidos.
O que é mais assustador é que, pela primeira vez, o PCC e o MS13, de El Salvador, particularmente nos últimos meses, estão desenvolvendo relações sérias, especialmente em Puerto Cortés, em Honduras. Pela primeira vez na história, o MS13 está fazendo tráfico de cocaína. Eles nunca lidaram com drogas.
A marca “Primeiro Comando da Capital ou facção PCC 1533” tem força no mercado e respeito entre os integrantes do mundo do crime (seus clientes em potencial).
Ao aderirem a marca, os novos integrantes, sejam individuais ou coletivos como gangues, bondes, e facções locais ou regionais, se comprometem a seguir determinadas regras de conduta:
o criminoso batizado ou companheiro responde pelo Regimento Interno (Dicionário PCC), deve seguir seu Estatuto, acompanhar os salves, e estar em dia com o pagamento da contribuição; e
os coletivos, podem aderir totalmente ao PCC assumindo sua marca e compromissos, ou se aliarem, usufruindo de parte dos benefícios, mas não tendo obrigatoriamente que seguir suas regras de comportamento.
O vínculo do indivíduo só poderá ser quebrado se ele abandonar o mundo do crime, seja: para seguir a vida como trabalhador,por ter se batizado em uma igreja, ou por outro motivo aceito em debate pelas lideranças locais.
Os coletivos podem sair da aliança, mas cada caso é avaliado de acordo com o grau de envolvimento e interesse:
o Comando Vermelho (CV) esteve ao lado do PCC por mais de duas décadas, desde sua fundação até o assassinato de Jorge Rafaat Toumani em 2016, quando houve uma separação tensa e nada amigável — homens que lutaram ombro a ombro passaram a se matar por todo Cone Sul.
Estatuto do PCC de 1997
Facção PCC 1533: Paraguai sucesso ou fracasso?
Camila Nunes Dias atesta que Jorge Rafaat Toumani com seu domínio da Tríplice Fronteira mantinha “uma certa ordem social na região fazendo uma regulação” entre os grupos criminosos e comerciais brasileiros e paraguaios.
Já Vinícius Madureira lembra que o controle de Toumani era intenso, chegando a armar emboscadas e matar integrantes do Primeiro Comando da Capital quando entravam em sua área de influência sem sua autorização.
As lideranças do PCC acreditaram que com a morte de Toumani, os fornecedores independentes de drogas e armas seriam sufocados e dominados, dificultando assim o acesso do Comando Vermelho à Rota Caipira.
No entanto, os planos das lideranças do PCC que executaram Toumani em 2017, foram frustrados pela complexa estrutura sócio econômica do Paraguai, baseada em sua vocação de polo de livre circulação de pessoas, serviços e mercadorias.
Desde o século XIX nação agrega povos e conhecimento, e em uma emaranhada rede internacional de relacionamentos e contatos — essa secular, arraigada e maleável estrutura socioeconômica não se dissolveu com o assassinato de Toumani.
Ao contrário, o vácuo de poder deu lugar a diversos fornecedores independentes a possibilidade dividir e absorver a demanda das facções inimigas do Primeiro Comando da Capital, deixando o quadro ainda mais intrincado.
Fahd Jamil George, o Fuad, outro megatraficante da região da Tríplice Fronteira, conseguiu manter-se independente, mesmo após a morte de Toumani, no entanto, escolheu se entregar às autoridades por medo de ser morto pelos integrantes da facção paulista.
O conflito entre os PCCs da região e os órfãos de Fuad; e a análise das contas de Maria Alciris Cabral, esposa de Minotauro, e dos traficantes Pavão e Galã demonstram o quão ininteligível se tornou a relação entre os diversos grupos criminosos na região.
Para o promotor de Justiça Lincoln Gakiya do MP-SP, com a prisão de Fuad, o PCC Paraguai passou de fase e tendo dominado o mundo do crime começará a atacar as autoridades policiais, políticas e judiciárias.
O pesquisador Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias lembram que a facção carioca já havia tentado a mesma estratégia quinze anos antes, eliminando a família Morel, que até então dominavam a fronteira, mas também sem conseguir consolidar o domínio.
Facção PCC 1533: PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL®
Steven Dudley vê certa similaridade entre a forma com que a facção PCC permite e controla aqueles que agem em nome da facção e o mercado de franquias.
A tensão é da natureza do franchising: o investidor busca maximizar seu capital, aproveitando-se das vantagens oferecidas pelo franqueador, da mesma forma que esse na obtenção de lucro e vantagens do franqueado.
A mesma lógica pode ser empregada no mundo do crime, apesar da facção PCC não ser efetivamente uma franquia — ao se vincular ao nome do Primeiro Comando da Capital, o criminoso ou coletivo passam a usufruir de algumas vantagens:
logística local e internacional: ligando-o às rotas do Paraguai à Colômbia, que atendam a sua região;
credibilidade do produto ou do profissional: não há controle de qualidade por parte do PCC, mas, os ilícitos vendidos ou os serviços prestados são menos questionados;
acesso à trabalhos lucrativos: a facção tem condições de aproveitar os indivíduos ou coletivos em negócios altamente rentáveis;
marca consolidada no mercado: o benefício de ter uma organização forte por trás desestimula concorrentes de disputar o mercado;
treinamento, suporte, financiamento e acesso a equipamentos: disponibilizados de acordo com a demanda do empreendedor, quase sempre terceirizado por outros integrantes do grupo.
Os benefícios desse último item, não fazem parte de um pacote, mas ao aderir à marca, o indivíduo ou coletivo tem o acesso facilitado aos irmãos que os prestam.
A organização criminosa pode ignorar totalmente esses negócios paralelos, ou intermediá-los, se responsabilizando ou não pelo pagamento, ou até, de acordo com o interesse ou necessidade, bancando parcialmente o investimento:
Durante a consolidação do Terceiro Comando Puro (TCP) no Rio de Janeiro, o PCC enviou reforço de homens e armas para garantir suas posições na guerra contra o Comando Vermelho e as milícias.
Assim como um vírus utiliza um agente externo ou uma ação do hospedeiro para passar de um indivíduo para outro, a facção utilizou-se das transferências de presos para passar de unidade prisional para outra.
Esse método de expansão, orgânico, eficaz e aleatório, tornou-se a alma da organização no qual os interesses pessoais dos integrantes e da organização se adequam e se aproveitam com naturalidade aos fatores extrínsecos.
Todo irmão, companheiro ou aliado é autônomo em seus negócios e seus procedimentos, desde que seguindo a ética do crime, sem chefes que determinem: funções, obrigações ou cobrando resultados.
Desta forma, as habilidades individuais são desenvolvidas independente da facção, mas são aproveitadas integralmente por ela.
Quando as forças policiais e a imprensa noticiam a derrubada de um ponto de distribuição ou a apreensão de veículos ou aeronaves da organização, muito provavelmente esses bens são investimentos de um integrante e não da facção.
Cada fração do trabalho é investimento individual ou coletivo: desde as fazendas produtoras e os armazéns distribuidores no Paraguai e na Bolívia, passando pelas rotas de distribuição e exportação no território brasileiro, chegando até as biqueiras que atendem ao consumidor final.
O Primeiro Comando da Capital não possui estrutura própria, e mesmo as atividades administrativas são atividades autônomas remuneradas, como as centrais de comunicação e tráfico de drogas para dentro do presídio — havendo exceções.
A organização possui bens e capital, mas estes são juntados para uma ação ou um fim específico, diferentemente da lógica de acumulação do capital empresarial, podendo ser distribuído após alcançado cada objetivo.
A mesma lógica é aplicada na ações executadas por interesse da organização: irmãos, companheiros e aliados, são convidados a se voluntariar de forma remunerada ou não — podem recusar, mas após a aceitação não podem abandonar a empreitada ou agir de maneira displicente em sua execução:
Dicionário do PCC (Regimento Disciplinar) — artigo 6º
Como qualquer integrante, os cargos dentro da facção, sintonias e disciplinas, tem autonomia em seus negócios particulares, mas quando agem em nome da facção não podem fugir ao procedimento correto ou tomar atitude isolada que possa denegrir a imagem da organização:
Dicionário do PCC (Regulamento Disciplinar) — artigo 4º
O mega assalto da transportadora de valores Prosegur, em Ciudad del Este em 2017, onde uma equipe composta de 40 homens saquearam US $12 milhões, é usado por Vinícius Madureira como exemplo da autonomia dos grupos dentro do Primeiro Comando da Capital.
Ironicamente, o mega assalto se deu no décimo aniversário da declaração dada pelo Ministério Público de São Paulo MP-SP no qual afirmava que “a transferência de 40 líderes da quadrilha para o presídio de Catanduvas, de isolamento total, marca o começo do fim do PCC”.
A facção paulista foi a liga que uniu para o mega assalto profissionais autônomos de diversas regiões dos dois países através de sua rede de relacionamentos e contatos — os empreendedores da operação utilizaram recursos próprios e dessa forma dispensaram o aval da hierarquia para a ação.
O caso do Prosegur deixa claro que a rede de contatos é mais dinâmica, autônoma, e complexa do que as autoridades imaginavam: indo do aviãozinho da biqueira até as principais lideranças das tranças aos residentes no exterior.
Dez anos depois que as lideranças do Primeiro Comando da Capital foram isoladas, e após um grande esforço para barrar a entrada dos celulares nos presídios paulistas, a facção provou que reinventou sua rede de network.
Facção PCC 1533: o caixa da organização criminosa
Os integrantes pagam uma parcela dos seus lucros para a organização e o responsável pela cobrança é o irmão da cebola, que também vende números da loteria interna do Primeiro Comando da Capital.
Os fundadores da facçãoimplantaram o conceito da função social do tributo ao PCC. A organização passou a ser vista como o ente em condições de gerir adequadamente os recursos arrecadados pelo bem comum da comunidade do mundo do crime.
Os valores aferidos financiam lotes de drogas e armas, e outras atividades para o crescimento e manutenção da facção, como o pagamento de advogados e funcionários públicos ou privados essenciais para o funcionamento da estrutura.
Diferentemente dos negócios privados ou de outros grupos criminosos, o lucro das operações não fica com os líderes ou investidores, devendo ser aplicados em benefício das demandas e dos mais necessitados do mundo do crime:
operações de resgate de presos,
domínio e pacificação de regiões de influência;
apoio de transporte as famílias que visitam os presos; e
indenização aos familiares de criminosos que foram mortos em ações de interesse da organização.
O desvio de finalidade do capital pago pelos integrantes é severamente punido. Gegê do Mangue e Cabelo Duro (Wagner Ferreira da Silva), foram alguns líderes que teriam morrido por usarem em benefício próprio dinheiro da facção.
Cabelo Duro chegava a lucrar 450 milhões de Reais todo o ano, mas mesmo com toda essa grana e poder, depois das mortes de Gegê e de Paca, ele percebeu que o próximo a ser morto pela facção.
Não deu outra. Integrantes sequestraram Nado que era de toda confiança de Cabelo Duro, desbloquearam o celular dele e usaram para chama-lo para o flat do Tatuapé, onde armaram uma casinha: Cabelo Duro foi metralhado e fala-se que nesse mesmo dia Nado foi decapitado e enterrado em região de favela.
O mundo dá voltas, Gegê e Paca foram mortos por Cabelo Duro, Cabelo Duro foi morto por Galo, Galo foi fuzilado na Zona Leste de São Paulo… — Luís Adorno para o R7
Facção PCC 1533: sobrevivendo onde outros pereceram
A rápida expansão do Primeiro Comando da Capital se deu graças a essa estrutura horizontal, permeável e multifacetada, que permitiu sua integração a outros grupos criminosos locais ou regionais: gangues, bondes, e facções.
Grupos criminosos tentam copiar o modelo, mas ao se expandirem e formarem alianças, perdem a coesão, se dividem, e partem para o fratricídio, colapsando por terem se organizado em torno de seus líderes ou grupos, e não sobre ideais e regras claras.
O Comando Vermelho, a mais antiga facção brasileira, falhou em se consolidar como força nacional, pois ao contrário da facção paulista que se estruturou em torno de pessoas e não de um ideal, baseando o seu crescimento na conquista física de territórios e não nas mentes e nos corações de seus integrantes.
Steven Dudley também vê similitude entre grupos terroristas e o PCC, já que ambos “fazem muitos recrutamentos dentro do sistema prisional” e possuem “uma ideologia que tem que ver com as diferenças de classes e a injustiça que existe no mundo”.
Todos concordam também que terroristas e PCCs utilizam-se de métodos e modus operandi semelhantes e utilizam o medo como ferramenta estratégica para a captação ou para circulação de recursos ilegais, assim como, utilizam-se de “métodos criminais para adquirir o financiamento necessário [para alcançar seus objetivos ideológicos]”.
Mas diferem na fonte de seus recursos e sua aplicação:
Enquanto grupos terroristas buscam financiamento e recrutamento através de simpatizantes, a organização criminosa obtém recursos através de ações criminosas autônomas nas quais seus filiados visam seu ganho pessoal.
Também diferentemente dos grupos terroristas, não fica com o butim das ações criminosas para realimentar-se: os criminosos ficam com o lucro das ações cedendo uma parcela, como um imposto sobre o lucro obtido, que deve ser aplicado pela facção em benefício das demandas e dos mais necessitados.
A fronteira entre um e outro grupo, como tudo no Mundo Líquido de Zygmunt Bauman, está se dissolvendo, se já não se dissolveu e apenas não nos demos conta disso.
Michael Fredholm enumera e discorre a respeito de uma dezena pontos nebulosos que separam os dois grupos, explicando que não há uma resposta simples para a pergunta:
“O Primeiro Comando da Capital (PCC 1533) é uma organização terrorista ou uma facção criminosa?”
Vera Lúcia Monteiro da Mota Melo alerta para o risco de ao confundirmos um grupo terrorista com um grupo criminoso abrirmos campo para o desrespeito dos direitos:
Facção PCC 1533 do futuro aos brasileiros pertencerá?
Pesquisadores do InSight Crime analisaram a mecânica do crime organizado transnacional através do processo de expansão da facção criminosa brasileira Primeiro Comando da Capital.
Às informações passadas por Steven Dudley, Vinícius Madureira, e Camila Nunes Dias somadas a outras me deixam a dúvida se a facção paulista, tal qual a conhecemos, não está prestes a acabar.
Desde suas mais remotas origens até poucos anos atrás, a cúpula do Primeiro Comando da Capital era formada por uma massa disforme de presos oriundos das periferias das grandes cidades.
Por puro preconceito, os operadores da polícia, da mídia, da Justiça, e a população em geral, desacreditaram que uma empresa com todo esse poder pudesse ser gerenciada por essas pessoas simples de dentro dos presídios.
No entanto, mesmo antes, mas principalmente após a pandemia da Covid-19, esse controle estava se alterando, passando cada vez mais a grupos especializados que manipulam a massa carcerária e dos criminosos nas ruas.
Não é possível que os negócios internacionais sigam sob um domínio que não o mesmo do abastecimento interno, e este por sua vez se interliga a todo o mundo do crime: do furto e assaltos ao tráfico de armas e pessoas.
Quando Camila Nunes Dias e Vinícius Madureira chamaram a atenção para o fato de que cada vez mais as decisões estratégicas e operacionais estão deixando os presídios para se concentrar nas mãos de empresários e da nova elite do PCC, colocaram uma pulga atrás de minha orelha.
Para Vinícius a questão é simples: haverão integrantes da facção capazes de ultrapassar essa nova fase da transnacionalização, a qual exige expertise em comércio e logística internacional — com domínio de línguas estrangeiras?
Mas, para mim, acendeu um sinal de alerta: qual a consequência para a política, a Segurança Pública, e para as comunidades se a facção deixar de atuar como defensora dos interesses difusos e dos negócios de seus integrantes e dos encarcerados, para ser uma facção com poder concentrado nas mãos de empresários, políticos e poucos líderes, que podem negociar o controle da organização criminosa para grupos estrangeiros, que, mesmo indiretamente passassem a ter sob suas ordens dezenas de milhares de integrantes armados?
Se houvesse mais armas nas ruas, ele colocaria outra no lugar, “tomaria um salve para aprender”, e seguiria sua vida — como vi isso algumas vezes.
Sinto saudades daquele lugar, da pequena ponte sobre o córrego, onde os garotos aguardavam de sinaleiros, e dos cavalos que pastavam sossegados no meio do capim gordura — talvez fosse vê-los o que me acalmava.
Dificilmente alguém me trás boas lembranças, mas ao ler o trabalho de André,revivi aquele dia e me senti de volta naquele lugar. Devo isso a ele.
Em um país sem controle sobre as armas
Houve um tempo onde as armas sobravam nas mãos de policiais, civis, e criminosos.
Viaturas policiais com armas frias, tanto para o uso ilícito dos próprios policiais como para entrouxar em algum desafeto.
Traficantes com armas frias, tanto para sua segurança pessoal e de seu negócio como ferramenta de convencimento nas cobranças.
Hoje, no entanto, é raro a polícia paulista andar com arma fria mocosada na viatura, assim como são raríssimas as abordagens que encontram indivíduos armados, principalmente em biqueiras, e são milhares de abordagens diárias.
As armas curtas foram controladas tanto pela aprovação do Estatuto do Desarmamento de 2003 durante o governo Lula quanto por ordem do Primeiro Comando da Capital (PCC).
O Estado retirou as armas das ruas para diminuir a taxa de homicídio, e o PCC para acabar com as guerras entre as biqueiras dentro das comunidades.
Assim como o governo, as lideranças da facção PCC 1533 perceberam que esse genocídio é ruim para a sociedade e para a economia, exceto para os fabricantes de armas e seus defensores.
PCC e Bolsonaro no lucrativo mercado de armas
Assim como um vírus, a organização criminosa Primeiro Comando da Capital evolui exponencialmente e já se prepara para atuar em um mercado de armas com menor custo e maior oferta e demanda.
André, citando Evan Ellis e Daniel Sansó-Rubert, explica essa mudança na dinâmica nos negócios de armas curtas ilícitas:
Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2020 nos países com maior influência da facção Primeiro Comando da Capital:
Sei que não existe corrupção no governo, principalmente por parte de Bolsonaro e seus filhos, e que com certeza eles nada recebem do mercado internacional de armas, que movimenta anualmente 80 bilhões de dólares.
Se estivessem, seria o que se chama de “corrupção sistêmica”, aquela na qual o agente público de alto escalão cria situações que facilitam em larga escala a atuação das organizações criminosas.
Bolsonaro aplica na política de armas a mesma lógica que aplica na gestão da Saúde: apostar no que acredita e no que agrada suas bases eleitorais independentemente dos resultados.
Existe um consenso internacional de que a diminuição do número de armas nas mãos da população tem influência direta no número de vidas poupadas, e no Brasil essa tendência se confirma.
A flexibilização da lei de armas do governo Bolsonaro fragiliza ferramentas que funcionam e estão sendo aperfeiçoadas há 25 anos: o “Sistema Nacional de Armas” (SINARM) e o”Sistema de Gerenciamento Militar de Armas” (SIGMA).
O governo federal, ao turbinar o mercado legal de armas e de segurança privada, impactará o mercado ilegal:
O Primeiro Comando da Capital e a flexibilização da lei de armas
As grandes organizações de tráfico internacional de armas, interessadas em investir nesse mercado, ampliarão as parcerias já existentes com o Primeiro Comando da Capital, que domina uma sofisticada estrutura de distribuição, com rotas estabelecidas com coparticipação de agentes públicos.
Para a facção PCC 1533, o custo operacional para o contrabando internacional de armas ainda é alto, precisando manter agentes nos órgãos policiais e de fiscalização para garantir o fluxo com menor índice de perdas.
Diversas rotas trazem as armas oriundas de diversos países fronteiriços, principalmente do Paraguai, ao sul, e da Venezuela, ao norte, mas também dos Estados Unidos, tanto pelos portos e aeroportos quanto pela Bolívia.
Além do apoio dos agentes públicos, as rotas geridas pelo Primeiro Comando da Capital incluem transportadoras, aviões e helicópteros próprios ou terceirizados, assim como uma malha de contatos em empresas de transportes ferroviários, aeroportuários, marítimos e fluviais e em aduanas e entrepostos.
Essa pesada estrutura não supre totalmente uma organização criminosa de estrutura gramínea, como a facção PCC 1533, e seus integrantes individualmente procuram soluções para seu próprio abastecimento:
militares e policiais desviam dos paióis;
empresas de segurança privada (de fachada ou por furto e roubo nas armarias);
contrabando, tanto o de poucas unidades em larga escala quanto em lotes maiores mas de forma independente;
furto e roubo de particulares em residência e comércio — em menor escala após a Lei do Desarmamento, mas com a flexibilização retomará seu volume e importância.
Em um país sem controle sobre os políticos
Interesses políticos impedem que haja um controle sobre o fluxo de dinheiro: da mesma forma que a família Bolsonaro consegue comprar dezenas de imóveis com dinheiro vivo, dinheiro legal, é claro, e a facção paulista também o faz.
Regras que acompanhassem, com eficiência, o dinheiro impediriam que tanto um deputado brasileiro quanto o sobrinho de Pablo Escobar em Barueri tivessem o trabalho de ter que ventilar seu apartamento para não embolorar as notas.
A infraestrutura de distribuição do Primeiro Comando da Capital se soma aos interesses políticos em um menor controle na circulação de armas e dinheiro vivo (agora com notas de 200 Reais) e a criação de entraves para o funcionamento dos mecanismos federais de controle de atividades financeiras.
O garoto de Sorocaba pegou a arma do mocó em um momento em que não se encontram armas com facilidade para substituir, se bem que o preço no mercado ilegal é mais baixo do que no legal.
A mão invisível de Adam Smith sumiu com as armas das ruas, mas seu valor de venda não subiu, pois o risco de tê-las e as altas penas impostas para quem for pego com elas desestimularam a busca pelo produto, confirmando a eficácia da teoria smithiana de mercado.
No imaginário popular, os integrantes do PCC estão montados em armas, mas não é bem assim: elas estão pulverizadas ou sob o controle dos responsáveis pelos paióis — certa vez conheci um deles, mas foi outra história.
Há muito não vou para Sorocaba, menos ainda para o Jardim Marli. Devo a André o recordar de boas lembranças — juro que enquanto escrevo, sinto a brisa, o cheiro e paz daquela quebrada.
O crime organizado na Tríplice Fronteira: governos e Primeiro Comando da Capital tomando pau de uma secular amarra socioeconômica.
PCC: não há solução simples para problema complexo
O combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC) não deixará os Estados nacionais da Tríplice Fronteira (TF)entre Argentina, Brasil e Paraguai mais próximos de eliminar o crime organizado da região.
O ativista russo Artemiy Semenovskiy da CTS Command me questionou sobre uma possível ligação entre as lideranças da facção paulista PCC 1533 com os integrantes da facção carioca Comando Vermelho, na região da TF.
A resposta curta é: “faça o que eu mando, não faça o que eu faço”.
A resposta longa é:
Tudo começou com…
O assassinato, na região da Tríplice Fronteira, de Jorge Rafaat Toumani, em 2016 marcou o fim da parceria entre integrantes do Primeiro Comando da Capital e da facção Comando Vermelho (CV).
… que virou uma sangrenta guerra …
Inimigos de ambos os lados são caçados, capturados, torturados e mortos, tanto no Brasil quanto no Paraguai, na Bolívia e até na Argentina — somando milhares de mortos.
… mas enquanto os moleques morrem …
O tempo passou e a guerra esfriou: novas fronteiras foram consolidadas, com escaramuças ocorrendo apenas nas regiões ainda em disputa, no entanto, investigações policiais provaram que integrantes da cúpula do Primeiro Comando da Capital agora negociam armas e drogas com o arqui-rival Comando Vermelho.
… afinal, o buraco é mais embaixo!
Engana-se quem acredita que existe uma resposta simples para uma questão complexa:
O assassinato de Toumani deveria ter eliminado os fornecedores independentes de drogas e armas no Paraguai, sufocando o Comando Vermelho no Rio de Janeiro, mas deu chabu, porque o Primeiro Comando da Capital não levou em conta a astúcia de Adam Smith e a história da formação sócio econômica daquela região.
Por outro lado, a logística do crime desenvolvido pela facção é invejável, como se tornou público com a Operação Palak da polícia argentina:
As armas chegavam desmontadas e em partes dos Estados Unidos a Buenos Aires, Santiago del Estero, Córdoba, Rio Negro e Santa Fe, já a munição ia da Alemanha para a Espanha e de lá para a Holanda, onde embarcavam para a Argentina. No país, uma rede comandada por um morador de Martínez montou o arsenal de guerra e, junto com as armas vendidas pelos donos de uma antiga fábrica em Córdoba, os enviou à cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, para finalmente entrar no Brasil e alimentar o Primeiro Comando da Capital. laseptma.info
O PCC, a formação sócio econômica da TF e a mão invisível do mercado
Há mais de um século a região desenvolve sua vocação de polo de livre circulação de pessoas, serviços e mercadorias, paulatinamente agregando: povos, conhecimento, infraestrutura em uma emaranhada rede internacional de relacionamentos e contatos.
Uma secular, complexa, arraigada e maleável estrutura socioeconômica não se dissolveria em poucas décadas por uma ação orquestrada entre Estados constituídos, e tampouco pela morte de Toumani.
Nas duas últimas décadas, Argentina, Brasil e Paraguai desenvolveram ferramentas jurídicas, institucionais e tecnológicas com o intuito de coibir a atuação das organizações criminosas na região da Tríplice Fronteira.
O assassinato de Toumani, ao contrário do que imaginou o Primeiro Comando da Capital, não garantiu sua hegemonia na fronteira, dando lugar a outros fornecedores independentes que trataram de absorver a demanda das facções inimigas.
Os recentes conflitos entre os PCCs da região e os traficantes independentes de Fahd Jamil; e a análise das contas de Maria Alciris Cabral, esposa de Minotauro, e dos traficantes Pavão e Galã comprovam a participação dos próprios líderes PCCs nessa cadeia de fornecimento — a mão invisível do mercado não abandona ninguém.
Do desenvolvimento estratégico para o retrato tirado
A segurança da fronteira brasileira é garantida pela Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (ENAFRON), pelo Sistema Integrado de Monitoramento das Fronteiras (SISFRON) e pela Operação Ágata.
Esses programas elaborados e implementados nas gestões Lula e Dilma visavam respaldar com equipamentos, pessoal e informação o combate ao crime organizado, mas tornaram-se uma ferramenta de marketing.
Apesar do empenho dos profissionais participantes do planejamento das operações, o resultado foi um belo espetáculo para a mídia, com fotos dos militares nas estradas e helicópteros sobrevoando as matas e os rios e policiais rodoviários e militares fazendo operações — garantindo um show para o público televisivo!
No entanto, é inegável os avanços feitos nesse período no combate ao crime organizado, criando condições para as futuras administrações.
Michel Temer continuou o processo de integração e aperfeiçoou as ferramentas jurídicas para integrar as diversas esferas de combate ao crime organizado na TF, agora com a presença também da Bolívia.
Jair Bolsonaro foi até a fronteira do Paraguai e bateu um retrato ao lado do presidente Mario Benítez.
Se Bolsonaro deixou de aprofundar os mecanismos transnacionais que visavam quebrar as grandes barreiras culturais, jurídicas e econômicas que poderiam minar as bases das organizações criminosas, pelo menos teve milhares de compartilhamentos entre seus apoiadores de sua selfie com Benítez.
O PCC se beneficia com a política de Bolsonaro
O pesquisador polonês Paweł Trefler afirma que a causa do fracasso dos Estados nacionais no combate ao crime organizado na região é a descontinuidade nos esforços em criar mecanismos permanentes e profundos para a eficácia do combate ao crime organizado na região da Tríplice Fronteira:
Estudo sobre o Primeiro Comando da Capital coloca em dúvida soluções e análises consagradas na política e no mundo acadêmico.
A pretensão de Marcos: analisar a facção PCC, “especialmente sua transformação de um grupo defensor dos direitos humanos em um ator não-estatal violento e transnacional” — fala sério?
O Primeiro Comando da Capital“é um ator que representa um desafio para a construção de uma sociedade pacífica em toda a América do Sul”? — ele também afirma que sim!
Ele não só fez essas duas afirmações, mas muitas outras. Veja com seus próprios olhos:
Marcos, ao contrário de muitos, acerta em suas previsões sobre a futura consolidação da facção no exterior por não ignorar as origens da organização criminosa.
As autoridades esculacham, encarceram e matam os garotos nas cadeias e nas favelas, gerando ídolos e mártires e assim consolidando o discurso de irmandade contra o opressor.
Fortalecido, com sangue nos olhos e com o sentimento de pertencimento a uma família protetora, o PCC se preparou para enfrentar inimigos poderosos.
Enquanto combate os órgãos policiais de todas as esferas, encara guerras com outros atores do mundo do crime de norte a sul do país: da Rota do Solimões no Amazonas à Guerra do Paraguai, passando pela disputa pelo domínio dos portos ao longo dos 10.959 quilômetros de costa.
Estima-se que apenas a cannabis que circula no Cone Sul, se legalizada, geraria 10 bilhões de dólares anuais — daí o interesse dos grupos criminosos pelo domínio dessas rotas.
o Primeiro Comando da Capital distribui 60% da cannabis produzida em solo paraguaio em uma área estimada entre 7 e 20 mil hectares (1.340 municípios brasileiros tem uma área de até 20 ha.) que produzem entre 15 e 30 mil toneladas por ano, ocupando duas dezenas de milhares de trabalhadores rurais: da pequena agricultura familiar aos latifúndios com o que há de mais avançado no agronegócio.
Enquanto o Estado ignora as origens da organização criminosa e a hipocrisia de suas política de drogas, os facciosos se abrigam por traz das muralhas do sistema prisional, se restabelecendo após cada ataque das forças de segurança .
Ao longo de sua história, o PCC tem sido um terreno fértil para o crime, principalmente pelo alto índice de pobreza e violência cultural do Estado em favelas e áreas pobres. Sem justiça social, a justiça baseada no crime encontra espaço para avançar.
Marcos Alan Ferreira
O Primeiro Comando da Capital garante a segurança para os seus nos locais onde o Estado só se apresenta pela sola dos coturnos, chutando e pisando em seus filhos e irmãos.
O imaginário da garotada é então capturado pela narrativa do infrator que se opõe aos poderosos e protege os indefesos ao mesmo tempo que enriquece.
Soldados preparados para usar a violência e a força armada, mas cuja principal arma é o espírito de família e o medo e o respeito que o nome Primeiro Comando da Capital impõe.
Robert Mandel, por sua vez, afirma que ficou ainda mais difícil construir uma sociedade brasileira mais harmoniosa com um ator tão violento e organizado como a facção PCC.
Robert confunde o sintoma com a doença — o Primeiro Comando chama a atenção para as desigualdades e para a criminalidade, assim como a febre alerta para uma gripe…
… já “Seu Jair” ignora a doença, colocando o enfermo em uma banheira com gelo para diminuir a febre.
Robert erra no atacado, mas acerta no varejo: seria mais cômodo assistirmos na tv, entre um assunto ou outro, sobre as condições desumanas no sistema carcerário e nas periferias em vez de sermos obrigados a encarar de frente essa situação.
“Seu Jair” erra no atacado e no varejo: não será com ações simples aprendidas em filmes americanos e no “Cidade Alerta” que se enfraquecerá a facção.
Marcos acerta no atacado e também no varejo:
“Este cenário desafiador não pode ser tratado com respostas simples. A presença e letalidade do PCC atingiu tal gravidade que uma abordagem de lei e ordem precisa ser combinada com uma abordagem abrangente. Um ponto de partida seria o controle do Estado sobre as prisões, aliado à presença em favelas e áreas pobres por meio de políticas sociais e de participação pública que tornam o crime uma opção menos atrativa para os jovens. Embora esse plano possa ser visto como utópico, a realidade é que uma abordagem de lei e ordem não resolverá o problema, nem apenas expandir as prisões sem uma estratégia clara para transformar o comportamento dos detidos. Problemas complexos exigem respostas abrangentes, especialmente para enfrentar um ‘ator não-estatal violento e transnacional’ poderoso que opera além das fronteiras nacionais.”
Pedro Rodrigues da Silva, o Pedrinho Matador, conhece o sistema prisional de São Paulo como poucos. Ele ficou sem ver a rua de 1973 até 2007 e de 2011 até 2018 — viveu mais de 40 atrás das grades e por lá, ele conta que viu mais de 200 presos serem mortos enquanto esteve por lá, sendo que mais de 100 foram ele mesmo que matou.
Viveu no cárcere no tempo do Regime Militar, da redemocratização e dos governos com leve viés progressista, mas mudança mesmo, houve quando a facção paulista despontou como hegemônica, acabando com as diversas gangs e grupos dentro das cadeias e presídios.
Sobre o Primeiro Comando da Capital ele afirmou durante uma entrevista:
“Fui [convidado a entrar no PCC], mas não entrei. Ali é o seguinte: depois que surgiu o partido, você vê que a cadeia mudou. Não morre ninguém porque o partido não deixa. É paz. Paz para a Justiça ver. Se começa uma briga, eles seguram. Eles também ajudam quem sai, arrumam trabalho.”
O grupo criminoso Primeiro Comando da Capital, assim como as bruxas e o comunismo, é utilizado para que grupos políticos, que estão no poder ou desejam chegar a ele, criem um ambiente de terror com alguma finalidade específica.
Aparentemente é o que voltou a acontecer agora na Bolívia, onde parte do governo do presidente Luis Arce deseja facilitar a ação no país da Drug Control Administration (DEA), apesar de há muito a facção PCC 1533 ter caído no esquecimento pela população boliviana.
Os números do Google Trends não deixam dúvidas de que o fantasma está sendo alimentado artificialmente para então poder ser combatido.
Facção PCC: os dois lados da questão
Quem se opõe a essa narrativa para justificar uma intervenção americana no país, que no geral não acaba bem, é o vice-ministro de Substâncias Controladas, Jaime Mamani Espíndola, que afirma que se fosse significativa a presença da facção paulista no país as autoridades não poderiam circular livremente como o fazem.
Quem apoia e alimenta essa narrativa e pede a presença do DEA, que no geral acaba trazendo dólares para o país e holofotes para políticos e agentes do Estado através de políticas de “intercâmbio”, é a oposição de direita que há poucos anos tentou tomar o país a força e a Comunidad Ciudadana (CC), uma coligação política de centro liderada pelo ex-presidente Carlos Mesa.