Colocando em dúvida as conclusões de pesquisadores e seus argumentos contra as alterações na legislação propostas pelo governo federal
PCC 1533: Pacote Anticrime, Lei de Abuso de Autoridade e Lei de Armas
A facção PCC 1533 entre o Impuro e o Puro
De certo, Bolsonaro e Sérgio Moro estão certos, e o tempo há de provar.
Eu não tenho dúvidas que a “voz do povo é a voz de Deus”, e foi o povo quem elegeu nas urnas Jair Messias Bolsonaro e nas ruas e nos corações Sérgio Moro; portanto, eles representam a vontade de nosso povo e, consequentemente, a de Deus.
As mudanças legislativas propostas permitirão o efetivo combate aos criminosos pelas ilibadas forças policiais nas ruas assim que forem retiradas as amarras que ameaçam os agentes da lei com punições por supostos abuso de autoridade.
O aparelhamento de um sistema carcerário rigoroso e a investigação criminal e financeira são as outras duas bases desse tripé que levarão ao solo as organizações criminosas como a facção paulista Primeiro Comando da Capital.
De certo, José e os outros estão errados, e o tempo há de provar.
Não venha Sandra Cristiana Kleinschmitt me dizer que a criminalidade se fortalecerá sob o império do liberalismo econômico proposto por aquele que foi eleito pelo povo e reverbera a voz de Deus. Cristina chega a afirmar que:
Não me venha Fabrício Potim me dizer que a trilha seguida pelo eleito, facilitando a compra de armas automáticas (incluindo as 9mm que até então eram de uso exclusivo das forças armadas):
com o encarceramento em massa e a maior rigidez prisional, o recrutamento de novos membros para a facção e sua doutrinação cresce exponencialmente;
com o “cidadão de bem” comprando armas, as biqueiras vão poder novamente se rearmar – em vários estados as armas hoje só estão disponíveis para missões;
com Flávio Bolsonaro no apoio, não há que se preocupar com o Coaf pesquisando as movimentações financeiras da facção; e
com o aumento da letalidade e da violência policial incentivada pelos governantes, a comoção gerada pela morte de inocentes possibilitará a criação de regras mais rígidas para controlar o trabalho policial.
As recentes capturas de dois membros da ‘Ndrangheta, em São Paulo, revelaram mais uma vez a proximidade entre a máfia italiana e o PCC brasileiro, dois dos grupos criminosos mais poderosos do mundo.
Em 8 de julho, a Polícia Federal do Brasil prendeu Nicola e Patrick Assisi em São Paulo por suspeita de tráfico de drogas. Nicola Assis é supostamente o principal contato da ‘Ndrangheta na América do Sul e trabalhou com o grupo brasileiro Primeiro Comando da Capital (PCC) para introduzir a cocaína na Europa, segundo pesquisa publicada no jornal Expresso.
Essas prisões não são mais do que os mais recentes indícios de que os dois grupos coordenam de perto suas atividades de tráfico de drogas. Uma investigação policial constatou que o chefe do clã Pelle de la ‘Ndrangheta, Domenico Pelle, viajou a São Paulo pelo menos duas vezes entre 2016 e 2017. Durante esse período, acredita-se que ele tenha se encontrado com Gilberto Aparecido dos Santos, também conhecido como Fuminho, a mão direita do líder preso do PCC Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola. Fuminho é um dos criminosos mais procurados no Brasil e acredita-se que coordena as remessas internacionais de cocaína da Bolívia para o PCC.
Enquanto isso, no primeiro semestre de 2019, as apreensões de drogas no Brasil aumentaram mais de 90%. Grande parte dessa cocaína se dirigia para a Europa, onde a ‘Ndrangheta controla as rotas de tráfego em grande parte do continente.
‘Ndrangheta e PCC 1533 logística transoceânica
Análise da organização InSight Crime:
Uma união de conveniência entre a ‘Ndrangheta e o PCC para contrabandear narcóticos do Brasil para a Europa foi consumada. Cada grupo controla um ponto no fluxo de cocaína, o que não representa risco para a contraparte.
Nos últimos anos, o PCC tem trabalhado para dominar redes de entrada ilegal e centros de transporte no Brasil e nos países vizinhos. Essa extensa rede de logística transformou-os no principal aliado criminoso de organizações estrangeiras que procuram tirar cocaína do Brasil. Por seu turno, o ‘Ndrangheta tem controle do movimento de cocaína para os consumidores no continente europeu.
A expansão do PCC inclui incursões na Bolívia, onde o grupo pode comprar cocaína diretamente dos produtores daquele país, segundo a Americas Quarterly. Fontes policiais no Brasil, falando sob condição de anonimato, disseram à InSight Crime que Fuminho está desempenhando um papel crucial na presença do PCC na Bolívia. Então, a cocaína é transferida para o Paraguai, um destino importante para mercadorias ilegais sob cujo controle o PCC travou uma dura batalha .
Do Paraguai, o grupo direciona a cocaína para cidades brasileiras de fronteira, como Ponta Porã e Foz do Iguaçu, segundo uma investigação do UOL. No entanto, fontes consultadas pela InSight Crime revelaram que Foz do Iguaçu foi em grande parte substituída por outros cruzamentos, especialmente pequenos atrelados entre Ponta Porã, no estado do Mato Grosso do Sul, e Guaíra, no estado do Paraná, onde há menos segurança. .
A droga é então transferida para o interior do país e, finalmente, para os portos de Santos (22,7 toneladas de cocaína apreendidas em 2018), Paranaguá (4,3 toneladas) e Itajaí (0,46 toneladas) no sudeste do Brasil. . O porto de Santos é um dos maiores centros portuários de toda a América Latina e um importante canal de narcóticos para a Europa. Em 2019, cerca de metade das apreensões de drogas foram realizadas neste porto, onde o PCC controla o fluxo de narcóticos .
Nenhum outro grupo criminoso no Brasil conseguiu uma rede logística que cubra toda a região, o que permite ao grupo controlar o movimento e a venda de cocaína para organizações estrangeiras, como a ‘Ndrangheta.
A máfia italiana opera no Brasil desde pelo menos os anos oitenta, segundo a Polícia Europeia. Naquela década, o clã Morabito de ‘Ndrangheta, dirigido por Giuseppe Morabito, coordenava as remessas de drogas de São Paulo para a cidade italiana de Milão.
Agora, o grupo tem cúmplices em toda a Europa, com a capacidade de descarregar drogas em portos de importância crucial, como Antuérpia, Hamburgo e Roterdã. Quando os carregamentos chegam, o ‘Ndrangheta trabalha com traficantes italianos , que transportam os narcóticos para uma distribuição mais ampla em toda a Europa.
Embora ambos os grupos tenham outras fontes de renda, esse canal transnacional desempenhou um papel importante no sucesso e expansão de cada um dos grupos. Nos últimos anos, o PCC experimentou um crescimento exponencial. Documentos apreendidos pelas autoridades em 2018 mostraram que a renda anual dos grupos poderia chegar a US$ 200 milhões. Os documentos também revelaram que as afiliadas do grupo em todo o Brasil e outros países se multiplicaram, passando de pouco mais de 3.000 em 2014 para mais de 20.000 em 2018.
Ter um fluxo contínuo de cocaína do Brasil também tem sido crucial para a ‘Ndrangheta. O grupo pode controlar até 80% de toda a cocaína que entra na Europa, a principal fonte dos enormes ganhos criminosos do grupo, estimados em US$ 60 bilhões por ano, comparável ao PIB da Croácia ou da Bulgária, segundo a CNN.
Os que fomentaram o mal que nos atinge são aqueles que se apresentam como paladinos de nossa proteção: o memoricídio e a facção Primeiro Comando da Capital.
O memoricídio e o nascedouro da facção PCC 1533
Recebi essa semana seu e-mail, no qual você pediu para que eu escrevesse sobre o tempo em que o sistema prisional ainda não estava sob o controle total da facção Primeiro Comando da Capital:
Mas não farei o que me pede, irmão.
Sem querer, você mexeu com minha sanidade ao desenterrar tristes lembranças, e agora, enquanto o respondo, sou tomado pelo frio, pela tristeza e pelo rancor que eu já havia deixado para trás.
Depois daquela noite em 1982, meus sonhos noturnos me abandonaram, e passei a sonhar durante o dia. Sobre isso, nosso amigo Edgar, quase nunca sóbrio, mas sempre com filosófica sobriedade, me disse que eu é que era um cara de sorte:
Desde que o frio, a tristeza e o rancor se abateram sobre os meus, eu nunca sei se o que vejo ou o que lembro é de fato real ou se é algo criado em minha mente por forças que eu não tenho como dominar.
Peço que desconsidere algum trecho que lhe pareça ter sido fruto de um desses sonhos diurnos forjados pelo caos que se tornou minha mente, ou então que lhe pareça que seja uma memória que jamais deveria ter sido resgatada das masmorras do passado.
O esclarecimento do crime pela Polícia Civil
Os garotos e o assassinato na chácara
Logo que voltei à cidade, por volta de 1980, vivi em uma chácara com uma mulher e seus três filhos. Formávamos um belo casal, e aquelas crianças faziam de nosso lar um lugar sagrado e feliz.
As crianças cresceram, e o mais velho, Lucas, acabara de fazer 18 anos, enquanto seus irmãos, Luciano e Luan, eram apenas um pouco mais novos – maldita hora em que eu brinquei numa noite dizendo que só faltava Lúcifer para completar a família!
Como sempre, às sextas-feiras, Lucas foi com Luciano até uma chácara não muito longe da qual morávamos, mas naquela noite houve por lá um assassinato – nunca saberemos ao certo o que realmente ocorreu, mas o dono da chácara foi morto.
Os garotos voltaram assustados e não conseguiam falar coisa com coisa – estavam em choque.
Assim como é hoje, na década de 1980, a polícia queria mostrar serviço, e no dia seguinte uma viatura veraneio preto e branca foi até a chácara para levar Lucas e Luciano à delegacia para ajudar a esclarecer o crime.
Nunca perguntei o nome daquele policial que levou os meninos, mas deve ter sido aquele que sem querer invoquei na noite anterior – Luciano não mais voltou vivo.
Sistema de (In)Justiça Pública
Polícia, MP-SP e Justiça: parceiros na injustiça
À noite, estranhamos que os garotos não voltavam da delegacia. Não tínhamos como chegar até a cidade, e Luan, o mais novo, seguiu a pé – era uma caminhada de pelo menos duas horas e ele não voltaria antes da meia-noite. Esperamos a noite toda.
No dia seguinte, a mãe dos garotos pegou uma carona com vizinhos. Na delegacia não teve notícias de Luan, informaram que Lucas confessou ter matado o dono da chácara para roubar seus pertences e que Luciano morrera:
Ao sair da chácara no dia anterior, a viatura não foi para a delegacia, e sim “fazer diligências com os garotos em uma fazenda”, e quando os policiais desceram com os garotos para “conversar” , Luan teria tentado pegar a arma do policial e foi morto.
Naquele tempo, o que o policial colocava no papel a Promotoria de Justiça aceitava (mais ou menos como acontece hoje); não havia audiências de custódia (instituídas em 2015), e os presos não eram enviados para os centros de detenção provisória (que nem existiam).
Meu sangue esfriou ao ler sua descrição do horror que eram as antigas “cadeias públicas” espalhadas por todas as cidades do interior e bairros da capital – milhares de homens enjaulados e empilhados, muitos sem julgamento, e outros tantos sem nem mesmo inquéritos (encarcerados provisoriamente pela capricho de algum político, empresário, ou delegado).
Me lembrou todas aquelas noites quando a mãe dos meninos voltava para casa contando os horrores que havia ouvido entre as mães e mulheres de prisioneiros que ficavam no entorno da delegacia – quando não eram enxotadas pelos policiais entre pilhérias como cães sarnentos.
Havia preço para tudo: ver o preso fora do dia da visita; deixar o “faxina” ou o carcereiro entrar com alguma coisa; e até mesmo a liberdade podia cantar, mas aí a conversa tinha que ser bem conversada, e não dava para nós.
Iniquidades sob os olhos vendados da Justiça
Estupro como empreendimento comercial no cárcere
Nesse ponto em que lhe escrevo, o frio, a tristeza e o rancor correm por onde antes fluía meu sangue, tudo porque você desenterrou lembranças de um passado que nunca deveria ter existido, mas que está cada dia mais perto de retornar, se não para mim, para outros.
Fico com ódio só de lembrar da noite em que a mãe dos meninos chegou chorando, pois soube que o garoto estava sendo usado como escravo sexual para que ela não fosse estuprada no dia da visita.
Quando ela relatou o caso para o carcereiro, ele se prontificou a retirá-lo da cela onde estava e colocá-lo em uma mais segura, mas pediu um dinheiro que não tínhamos, então deu de ombros.
Durante muitos anos, a mãe dos meninos ficou todos os dias em frente à delegacia para que dessem notícia de Luan, o mais novo, que havia sumido ao ir procurar os outros, e ficando lá, ela sentia que de certa foram protegia o filho que lá ainda estava preso.
Quando ela não retornava a noite, eu sabia que era por que a “tranca virou”, havia motim e algum preso iria morrer, para alegria da mídia que venderia mais jornais, dos políticos que apareceriam dando soluções mágicas ou do delegado que virava pop star.
A redemocratização e o sistema prisional
O Estado humanizando o sistema carcerário
Após o julgamento, se condenado, Lucas iria ou para a “Casa de Detenção do Carandiru” ou para a Penitenciária do Estado na capital, ambos depósitos pútridos de gente – havia outras 13 penitenciárias, mas os condenados daqui sempre iam para a capital.
Hoje, olhando para aquele tempo, vejo que o governador tentava humanizar o sistema prisional, mas a cultura do ódio havia degenerado o sistema como um câncer, alimentado por interesses políticos e econômicos enraizados na polícia durante o Regime Militar.
E mudanças culturais não ocorrem da noite para o dia:
O garoto viveu os piores horrores por quatro anos até seu julgamento, no qual foi inocentado – não havia provas, apenas a sua confissão, que foi colhida na delegacia e que apresentava contradições com a forma como o homem foi de fato morto.
Lucas foi torturado e preso por policiais que forjaram a sua confissão, mataram Luciano e sumiram com Luan que nunca fez mal a ninguém… e os responsáveis sequer tiveram que responder por seus crimes e pela tragédia que impuseram à família.
Maldita hora no qual brinquei que só faltava Lúcifer para completar nossa família! Ele não se fez de rogado, veio no dia seguinte em uma viatura veraneio preto e branca para destruir minha família e inundar de frio, tristeza e rancor minhas veias.
O Massacre do Carandiru como berço do PCC 1533
Da opressão do cárcere nasce a facção PCC
Na década de 1990, as revoltas explodiram nas “cadeias públicas” e no restante do sistema prisional brasileiro – a população carcerária não aguentava mais a opressão dentro do sistema prisional paulista, o que faz surgir a facção PCC 1533.
Carapanã: Viracasacas Podcast (em 1h11m11s do episódio 125)
Agentes públicos e gangues que agiam dentro do sistema prisional tiveram que se curvar diante de um grupo hegemônico e coeso, cessando a carnificina e a exploração.
José Roberto de Toledo, da Revista Piauí, nos conta com assombro como é essa nova realidade:
Lucas foi solto antes que a hegemonia do Primeiro Comando da Capital trouxesse para dentro dos cárceres a pacificação, e emparedasse o Estado exigindo melhores condições nos cárceres, como constava no Estatuto do PCC de 1997:
No total, 111 presidiários foram assassinados por 74 policiais, embora os presos feridos que pereceram depois nunca entraram na contagem, o que indica que cada policial teve pelo menos 1,4 cadáver para chamar de seu – apesar da atrocidade, 52 desses PMs foram promovidos.
Com a repercussão internacional do massacre e vendo que os presos não abandonaram a luta, ao contrário, recrudesceram-na, o estado de São Paulo passou a paulatinamente adotar políticas visando a criação de condições mais dignas dentro dos cárceres.
Castigo abstrato e castigo Concreto
Perdoando aquele que mata mas não perdoa
Tantos afirmavam que eu deveria entender a ação dos policiais que mataram Luciano, desapareceram com Luan, fizeram de Lucas um homem que hoje perambula pelas ruas catando latinhas, e enlouqueceram a mãe dos garotos que…
… eu aceitei e enterrei essas lembranças no fundo das masmorras da memória e não mais pretendia resgatá-las, perdoando e esquecendo o mal causado por aqueles assassinos, que por sua vez, não foram capazes de perdoar um garoto empinando pipa com uma paradinha na mão:
“Suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também.”
Para uns, o que aqueles policiais militares fizeram no Carandiru ou o que os policiais civis fizeram com os meninos foram crimes cujos responsáveis deveriam ter sido punidos, mas, para outros, não.
Para uns, o que aqueles garotos, que empinam pipas ou conversam nas ruas e praças e vendem drogas para quem os procuram, fazem deveria ter uma punição, mas, para outros, não.
Em algumas nações, esses policiais ficariam presos, isso se não fossem condenados à morte, enquanto em outras nações os garotos poderiam vender legalmente certas drogas em lojas.
O Primeiro Comando da Capital conquistou a hegemonia pela força, assim como as forças policiais mantêm sob controle a criminalidade com demonstrações de poder e crueldade. É o efeito dobradiça descrito pela pesquisadora Tarsila Flores:
A complexidade que envolve a referida situação repugna toda e qualquer tentativa na suposta identificação de um único responsável que dispare o gatilho da geração desse fenômeno.
Enquanto “cidadão de bem” torce para preso morrer, Cristo…
Um longo caminho separa a justiça carcerária
Desde que tudo isso aconteceu com os meninos, a realidade mudou muito à custa de rios de sangue, inclusive de inocentes.
A organização dos cativos em torno da facção Primeiro Comando da Capital, assim como governos que investiram na aplicação de metodologias humanistas na administração carcerária, conseguiu manter a fervura sob controle.
No entanto, ainda hoje há presos cuja totalidade da pena já foi cumprida, porém ainda se encontram nas dependências do cárcere, esperando o BI para cantar a liberdadeque deve ser feito por um advogado, profissional que, por vezes, aproveita mais essa oportunidade de lucrar com as famílias.
A iniquidade aumenta o grau de insatisfação e revolta dos internos no sistema prisional, o que não deve acabar tão cedo, afinal alguém tem que sustentar um milhão e cem mil advogados e mais cem mil formados todos os anos.
A sociedade é complexa e os interesses se opõem, isso é natural, algo da condição humana. Não há bons e nem maus, apenas pessoas que querem viver e lutam pelo seu espaço, e por isso que não vou escrever sobre o que você me pede, pois desenterraria antigas lembranças.
Eu escolhi por minha própria vontade enterrar a lembrança dos crimes cometidos por aqueles policiais, chancelados e protegidos por Promotores de Justiça e Juízes? Será que eu enterrei fundo aquelas lembranças por minha própria opção?
Giselle afirma que não. Eu fui apenas um entre milhares ao longo de nossa história, pois esse memoricídio acontece no Brasil desde a chegada dos portugueses, passando pela escravidão e pelo Regime Militar.
Doutrinando no esquecimento seletivo
Eu, Giselle, aquele policial que estava na viatura preto e branca que foi buscar os garotos e os profissionais da máquina prisional na década de 1980 éramos crias da Ditadura Militar.
“De alguma maneira, essas décadas produziram um esquecimento, sobre o presente de então, que agora é o nosso passado.”
A decisão de perdoar e esquecer tomada por nós que tivemos nossos garotos mortos, torturados, presos ou desaparecidos foi induzida pelo clima da “anistia ampla geral e irrestrita”, que se incorporou à cultura nacional pós abertura política e vige até hoje.
Políticos populistas prometem endurecer o sistema prisional e ampliar o poder dos agentes prisionais e policiais – sob os zurros de aprovação de jovens que nem tem ideia do que isso de fato significa.
Cada um desses garotos que zurram acredita estar protegido por sua bolha imaginária, como se Lúcifer se importasse se de fato eles são trabalhadores, estudantes ou vagabundos – assim como foi no passado, o Promotor e o Juíz acreditarão na versão que o policial apresentar.
Eu desejaria que você não tivesse tirado do fundo da masmorra de minhas memórias essas lembranças que envenenaram novamente meu sangue e minha mente, e, por isso, não vou escrever sobre o que você pede, mesmo por que não poderei escrever por algum tempo.
Hoje, dia dos pais, eu estava a caminho do cemitério para visitar o túmulo de Luciano, quando vejo Lúcifer,de óculos escuros, estacionando sua Hilux preta…
Desde que o frio, a tristeza e o rancor se abateram sobre os meus, eu nunca sei se o que vejo ou o que lembro é de fato real ou se é algo criado em minha mente por forças que eu não tenho como dominar.
Peço que desconsidere algum trecho que lhe pareça ter sido fruto de um desses sonhos diurnos forjados pelo caos que se tornou minha mente, ou então que lhe pareça que seja uma memória que jamais deveria ter sido resgatada das masmorras do passado.
O combate ao Primeiro Comando da Capital e a rota da cocaína para a Europa via África segundo um artigo da pesquisadora Carolina Sampó da UNLP.
A impunidade impera para quem tem a lei em suas mãos
O garoto morto nunca botou a mão em uma arma. Ele, em seus corres, nunca ia armado ou agia com violência, mas na versão da polícia ele estava na garupa de uma moto em fuga e atirava em direção da viatura – por isso teria sido morto com dois tiros nas costas.
O garoto morreu na trairagem, e coube a mim buscar sua mãe e sua irmã no distrito de Santa Maria do Campo onde viviam. Foi lá, enquanto as esperava nos fundos da casa do pastor, que conversei com uma senhora que, se der certo, um dia você poderá conhecer.
O distrito é composto de umas quinze casas, uma vendinha e dois bares na beira da pista, uma rua que sobe para a igreja e uma ruela que desce e onde mora o pastor – o local ficou famoso anos atrás quando houve um “assassinato na casa do pastor”.
Uma comunidade simples, de gente simples, cujos filhos podem ser mortos sem constrangimento ou investigações, principalmente se os assassinos tiverem a lei em suas mãos.
João Doria e a realidade por trás da persiana
A senhora e o “sorriso sem vergonha” do governador
Primeiro ela falou sobre si mesma, com o olhar distante: só havia saído daquela vila duas vezes na vida, para cuidar dos documentos quando sua mãe faleceu, mas sempre acompanhava tudo o que acontecia ao seu redor pelo jornal e pelas coisas que outras pessoas vinham lhe contar.
Valha-me Deus! Preparei-me para uma enfadonha ladainha. Ora, pensei, sorte dela nunca ter saído daqui, o mundo lá fora não está nada fácil, não!
Mas ela me surpreendeu. Sabendo que eu estava lá por causa do garoto morto, ela me veio com essa:
… mas ao ver aquela senhora de olhos azuis, magra, vestida como a Bruxa do 71, e que nunca tinha saído da vila, eu tive a certeza que ela seria uma defensora ferrenha desses grupos radicais que pregam prisão e extermínio – só que não.
Sei que foi preconceito meu…
… mas aquele jeito de falar da vovozinha me fez acreditar que ela só entendia de receitas de bolo, fofocas de vizinhos e rezas – só que também não.
Quando ela se referia ao governador ou à polícia, chegava bem perto, falava baixinho olhando para os lados e repetia: “sem vergonhas”. Eu nunca ia esperar isso de uma senhorinha como aquela – e isso foi puro preconceito meu!
As parcerias da Família 1533 no Brasil e no mundo.
Um banho de realidade em um sorriso de uma noite de verão
A senhora me chamou a atenção para o fato de que não se podia levar a sério a afirmação do governador por dois motivos:
a quebra da estrutura, como sugerida por Dória, causaria o ingresso de grupos estrangeiros ou uma guerra nas ruas pela liderança, por mercados e rotas – e nada indicaria que estivesse ocorrendo.
Você entendeu por que disse que aquela senhora, que nunca saiu daquela vila, me surpreendeu?
E tudo se encaixou: a conversa com a senhora, o massacre de Altamira na guerra pela Rota dos Solimões, a afirmação do governador de São Paulo e a morte do garoto, por isso voltei aqui para te falar um pouco mais sobre a Rota Africana no tráfico internacional.
O trabalho de Carolina demonstra a falta de senso de realidade (ou de ridículo) no discurso do governador:
Um terço da cocaína chega à Europa através da África vindo dos países interiores da América Latina, onde a área de cultivo cresceu 76% nos últimos 3 anos para atender ao crescente aumento da demanda, e…
João Doria, com seu sorriso “de sem vergonha”, afirma que retirou a facção Primeiro Comando da Capital dessa complexa questão transnacional, ao isolar seus líderes e fazer operações para sufocar sua estrutura administrativa.
A senhora de Santa Maria do Campo parece que não acreditou que os produtores hispano-americanos deixaram de exportar para a África e para hemisfério Norte sua produção de entorpecente, passando pelo Brasil, utilizando a estrutura logística da facção paulista.
Mas se isso tivesse acontecido, não teria sido a primeira vez que a estratégia de distribuição internacional de drogas se adaptaria aos novos métodos e mecanismos de controle, como me contou Carolina:
O Primeiro Comando da Capital organizou nacionalmente centenas de grupos criminosos locais, criando uma rede integrada de logística, que permitiu que o tráfico internacional de drogas se deslocasse dos tradicionais cartéis da América Hispânica para o Brasil.
Organizações criminosas estrangeiras, como a ‘Ndrangheta e o Hezbollah, aproveitando essa estrutura, firmaram parceria com a facção PCC 1533 e entregou a ela o gerenciamento de compra, transporte e envio em território americano.
Se é verdade que o governador de São Paulo sufocou e desestruturou a organização do Primeiro Comando da Capital, as drogas estariam se acumulando nos países produtores e os usuários europeus estariam sofrendo crises de abstinência – só que não.
Se o PCC deixasse de gerenciar o sistema, as drogas continuariam a ser distribuídas, seja por grupos locais pulverizados ou diretamente pela organização criminosa italiana. A realidade é que a estrutura de distribuição e embarque se mantém.
E se assim for, os esforços e gastos nas megaoperações de transferências para presídios federais terão sido apenas para a satisfação da mídia e dos eleitores punitivistas, sem resultado nas ruas, exceto integrar cada vez mais as lideranças das facções.
A facção PCC e a rota da cocaína
PCC infiltrando-se no tecido social e abrindo caminhos
Há alguns anos, conheci através de grupos sociais, garotos que da África mantinham relações com os PCCs brasileiros. Era gente simples, vivendo em ruas de terra e ostentando – a única diferença que percebi é que entre eles alguns eram muçulmanos.
Antes de conhecer Carolina eu não imaginava como é a teia que envolve esses garotos que, tanto aqui quanto lá, são mortos pela polícia impunemente enquanto caravanas passam repletas de drogas com o conluio dos agentes públicos.
O mercado nunca é combatido, sempre seus operadores, o que faz com que, por vezes, rotas e parceiros logísticos tenham que ser substituídos. Contudo, o volume produzido e consumido se mantenham crescendo:
O Primeiro Comando da Capital integrou essas famílias da África, se associando a elas sem lhes tirar a liberdade, o mesmo procedimento que é aplicado com sucesso dentro do território nacional e nos outros países nos quais atua.
Não se pode afirmar com certeza quando o Primeiro Comando da Capital iniciou suas operações por lá, mas se sabe que as facções brasileiras mantêm laços comerciais desde 2012, e o Hezbollah tem uma presença importante naquelas bandas:
É fato que ao longo da última década os diversos governos paulistas, incluindo o de João Dória, implantaram com sucesso ações para controlar e isolar a massa carcerária das ruas, no entanto o tráfico e a criminalidade continuam aqui fora com seu fluxo inalterado.
A política de combate às drogas que levou ao poder governantes por todo o Brasil está se mostrado apenas eficaz como ferramenta na limpeza étnica e social, sem macular o tráfico de drogas, tanto o que nas ruas quanto o transnacional.
Assim, o Primeiro Comando da Capital mantém o ritmo das exportações por portos no Brasil, na Argentina e no Uruguai, consolidando nossa nação ao lado da Colômbia e Venezuela como os maiores exportadores de cocaína da América Latina,
Nem a senhora da vila Santa Maria do Campo acreditou que todo esse esquema internacional foi arranhado pelo governador João Dória, apesar do seu sorriso “de sem vergonha”.
A formação fasciculada da facção paulista permite que sejam desenvolvidos contatos nas mais diferentes camadas do tecido social, cooptando criminosos, trabalhadores e autoridades civis, militares e policiais nas mais diversas nações em que se faz presente.
Carolina conta que acredita que a mesma metodologia usada pelo Primeiro Comando da Capital é utilizada pela ‘Ndrangheta, distribuidora final de grande parte das drogas exportadas para o hemisfério norte:
Enquanto isso, acompanho a mãe e a irmã de mais um garoto morto pela polícia para que o Estado possa demonstrar que há um efetivo combate ao tráfico de drogas. Me pergunto se a senhora está certa. Será realmente que “não se pode se trancar em casa com as persianas fechadas para sempre”?
Pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul afirmam que os garotos do tráfico se consideram trabalhadores, mas como é isso na vida real?
A “Operação Jiboia” e meu “retiro espiritual”
Dizem que “homens ameaçados tem vida longa” – não sei se isso se aplica às organizações, o que eu sei é que as autoridades ameaçam acabar com a facção Primeiro Comando da Capital há mais de vinte anos, embora ela só tem se fortalecido.
Sem a operação do GAECO (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) contra a facção PCC 1533, sem que durante minha viagem eu tivesse acompanhado um companheiro em seus corres e sem que eu tivesse conhecido Ana e Betina, eu não viria aqui te dizer que garotos do corre não são vagabundos, ou, pelo menos, eles mesmos não se consideram como tais.
Tudo começou assim…
GAECO coloca 500 homens na caça aos PCCs
O GAECO saiu à caça aos PCCs aqui da região de Sorocaba: a “Operação Jiboia” cumpriu 50 mandados de busca, apreendeu veículos, armas e dinheiro e prendeu suspeitos.
Eu, por coincidência ou não, na madrugada desse dia, deixei meu carro que é muito manjado em uma oficina mecânica de um conhecido e tomei um ônibus para uma cidade próxima, onde um companheiro me recebeu para esse meu “retiro espiritual”.
Assim, assisti pela televisão a ação da polícia, imaginando quem estaria assumindo as biqueiras e quanto teriam que pagar de aluguel para as famílias daqueles que foram presos. Eu conhecia algumas daquelas biqueiras… talvez uns dois mil por semana, quem sabe?
Rodoviária: porta de entrada para as drogas
Encontrando um companheiro na rodoviária
Afastado das ruas e desse site, esperaria a poeira baixar, mesmo porque o fluxo continuaria como sempre, afinal, essa é a lógica do mercado em uma economia liberal: existindo demanda, haverá oferta, e todo vácuo é rapidamente preenchido.
Quando cheguei na cidade, o companheiro já me esperava na rodoviária. Comemos pastéis em um dos boxes e ficamos conversando. Só lá pelas dez da manhã saímos da rodoviária, mas não fomos longe, paramos na praça em frente.
Um homem com uniforme de uma companhia intermunicipal de ônibus vem até nós e combina com o companheiro de trazer de Campinas um pacote em sua última viagem do dia – ele pega discretamente um maço de dinheiro para pagar o fornecedor e avisa para passarmos em sua casa à noite para pegar a mercadoria.
Conversa conosco sobre amenidades sempre de olho no relógio da rodoviária e, faltando dez minutos para dez da manhã, vai até a plataforma, abre o ônibus e começa a recolher as passagens. Pontualmente, às dez da manhã ele parte.
A realidade brasileira superando a ficção
Aquela cena em nada parecida com o que vemos na TV: sem aquelas figuras sinistras com problemas psicológicos e sociais ou negociações tensas.
Alguns dias depois, conheci melhor esse motorista, que sempre estava sorrindo e sua maior alegria era sua família, gente boa. De fato, ele entrou para o negócio porque era usuário – hoje nem sei se ainda usa, mas faz as entregas quando tem oportunidade de ganhar uns trocos.
Qualquer um que visse aqueles dois conversando sossegadamente naquela praça jamais imaginaria que o abastecimento das biqueiras de parte da cidade estava sendo garantido ali, e confesso que até para mim isso foi uma grande surpresa.
Biqueira PCC ISO 9000
Biqueira: um negócio altamente rentável
Depois do almoço, voltamos para a mesma praça em que estivemos de manhã. Ali ao lado havia o ponto final de algumas linhas urbanas, e dois motoristas vieram até nós e entregaram pacotinhos com dinheiro trocado – de certo recolhe de algumas biqueiras.
Eu nunca tinha presenciado um esquema como esse:
Os ônibus eram usados desde a chegada da droga na cidade até o recolhe do caixa, mas fora essa opção logística, a organização do comércio seguia o modelo tradicional: gerente, vendedores e aviõezinhos.
Saindo de lá, passamos em uma biqueira que ele havia comprado. Segundo ele, nesse momento sua presença ali era essencial, mas depois de pegar embalo era só manter o equilíbrio e fazer o controle.
Essa biqueira lhe custou 50 mil reais, e estava sendo paga em parcelas, mas já valia mais que o dobro e nem havia três meses da compra! Foi um bom negócio, e ele pretendia vender o ponto por 180 mil em mais alguns meses.
Para isso ele investia na qualidade das drogas entregues ao usuário, evitava o desabastecimento e mudou a forma com que gerenciava seus “colaboradores” depois que percebeu que estava gastando muito sem aumentar a rentabilidade.
Com o crescimento e a padronização de procedimentos, o Primeiro Comando da Capital mudou o posicionamento na sociedade periférica dos traficantes e seus auxiliares: de vagabundos e drogados, eles passaram a ser vistos como integrantes de uma grande organização.
E o “patrão” nesse novo ambiente passou a ter de entender sua posição e de seus moleques na comunidade para ficar condizente com o discurso da facção e com a moral do mercado:
Ser vagabundo, nas favelas e nas comunidades, é não trabalhar, não ajudar no sustento do lar e explorar a própria família – esse não tem respeito. Por outro lado, aquele que tem uma renda constante em uma organização reconhecida é um trabalhador, seja ele um motorista de ônibus, um vendedor ou um gerente.
Você aceitará que um traficante, um palestrante ou um vendedor de chocolates sejam trabalhadores dignos, dependendo do lado da ponte em que estiver, ou talvez você seja como Torquato Jardim e Miss Marple, que acreditam que “a corrupção é da natureza humana” e “como há muito de humano em todos nós”…
Bem, só tenho a agradecer ao GAECO que me deu a ideia desse meu período sabático, que me permitiu sair um pouco da rotina dos corres e do site e conhecer um pouco mais sobre como funciona a nossa sociedade. Agora, mãos à obra:
Mene foi deixado próximo ao condomínio, e a mulher foi informada para pegá-lo e conduzi-lo ao serviço médico. Ele sofreu lesões grave em ambas as pernas, quebrou braço esquerdo e teve um dedo da mão direita esmigalhado. Não está mais nos corres.
Capitão não mais foi encontrado. Há duas versões sobre o que pode ter acontecido: uma que diz que ele foi morto e outra que conta que ele estaria no Paraguai. A esposa continua morando no mesmo condomínio.
O Buguinho me mandou uma mensagem afirmando que na listagem das facções amigas e inimigas existe um erro, só que não posso alterar o texto pois ele foi passado por um Geral das Trancas em um grupo de WhatsApp da facção, então fica como está até que outra lista me chegue.
Agora vou buscar o carro no mecânico e ver como está o clima por aqui. Fui.
De que adianta matar um corpo se a alma continua viva? – a ineficácia das políticas de Segurança Pública baseadas em ações policiais de combate à facção PCC 1533.
Bardos cantavam histórias fantásticas que assombravam aqueles que as ouviam em volta das fogueiras nos bosques, nas aldeias ou nas mal iluminadas tabernas, e os heróis de suas narrativas eram jovens que se insurgiam, desafiando os soldados dos poderosos.
MCs cantam histórias fantásticas que assombram aqueles que as ouvem em seus celulares, nas avenidas e nos bailes funks, e os heróis de suas narrativas são os jovens que se insurgem, desafiando os policiais que entram nas comunidades a mando dos poderosos.
E aquela noite eu não tinha dúvidas que estava olhando para um desses garotos cujas histórias seriam contadas pelas quebradas muito tempo depois que ele as tivesse deixado.
Os pequenos feitos daquele moleque seriam engrandecidos cada vez que alguém recontasse uma de suas aventuras, sempre aumentando um ponto ao conto, e, quem sabe, um dia não acabaria sendo letra de algum Proibidão?
Na noite de quinta-feira tive que entregar alguns pacotes no Planalto, e valeu a pena: a caminhada foi boa e conheci esse garoto.
A arte de ocultar provas da polícia
Show de magia na quebrada do Planalto
Uma viatura da Polícia Militar deixava o Planalto no momento em que eu entrava no bairro.
Próximo ao local onde devia fazer a entrega havia um grupo de jovens, e logo que estacionei fui falar com eles para saber como estava o clima por lá – uma das garotas eu já conhecia.
Três moleques, duas meninas e dois Gols rebaixados, sendo um com placa de Campinas e outro de Indaiatuba; eles riam muito e quando a garota me viu, veio empolgada me apresentar aos demais – o clima não podia estar melhor.
Ela me contou que eles acabaram de ser abordados pela viatura que vi deixando o bairro, e enquanto a garota falava um dos garotos mostrou para mim com orgulho um saquinho com uns 100 gramas de cocaína. Todos voltaram a rir – o moleque havia feito mais uma das suas.
Eles me contaram a história…
Assim que a viatura entrou na rua, o garoto mostrou aos amigos o pacote; só deu tempo de levantarem os olhos: os policiais já os estavam abordando.
Procedimento padrão: revista pessoal e nos veículos. Como nada encontraram, os policiais foram embora, mas assim que a viatura virou a esquina o garoto abriu a mão e mostrou para os outros que continuava com o saquinho de cocaína.
Não era a primeira e nem a última vez que ele fazia uma jogada arriscada e se saía bem.
Nunca saberemos como ele fez para sumir com a droga tão rápido, na frente dos amigos e dos policiais e passar pela revista, afinal um mágico não revela seu truque – daí o fascínio pelo ilusionismo.
Jovens chamando atenção de policiais
Moleques como isca e cortina de fumaça
Fiquei pelo menos meia hora com eles, cada um contando uma façanha diferente protagonizada pelo moleque de Indaiatuba, enquanto ele mesmo apenas sorria.
Imagino que todos estavam ali para chamar a atenção para si caso aparecesse uma viatura policial, garantindo que a entrega ocorresse sem problemas – eles eram a isca e, se necessário, serviriam de cortina de fumaça.
Ouvi com prazer cada história que contaram e teria ficado ainda mais se não houvesse chegado o irmão que ia ficar com a mercadoria – a outra garota que estava com os moleques era sua companheira.
Imagino que se naquela noite os PMs não tivessem abordado os moleques, talvez ainda estivessem por lá quando eu chegasse ao Planalto.
Quando o irmão chegou, cumprimentou os garotos, me pegou pelo braço e me levou para trás dos carros onde me entregou o dinheiro.
Fomos até o meu carro, entreguei os pacotes a ele e saí dali me despedindo apenas com um aceno para os garotos.
Pesquisador Eduardo Yuji Yamamoto
O Primeiro Comando da Capital como corpo social
No caminho de volta tentei entender o que ocorreu e o que estava acontecendo em nossa sociedade – não era nada daquilo que era mostrado pela televisão e pelas redes sociais.
Seriam esses os traficantes que precisavam ser abatidos com um tiro na cabecinha como prega a atual onda sócio-política ocidental?
O pesquisador falava sobre os black-blocs, mas para mim o estudo se encaixava como uma luva naquilo que eu acabara de vivenciar, e descrevia com perfeição as pessoas que eu tão bem conhecia.
O fato de o Primeiro Comando da Capital haver se transformado em um “corpo político” é uma consequência da crise pela qual passa a democracia ocidental desse início de século:
Aqueles moleques e aquelas meninas nada mais são células que compõe um complexo “corpo político”, e aquele gesto do garoto de desafio velado ao Estado é apenas um entre milhares de “insurgências” que pipocam madrugada a dentro nas ruas das periferias.
Nossas emoções residem em nossa alma
Atacando o corpo do Primeiro Comando da Capital
Ouvindo os diversos discursos messiânicos de combate ao Primeiro Comando da Capital: Sérgio Moro com o seu “Projeto anticrime”, Wilson Witzel com seus drones e snipers com licença para matar, e João Dória prometendo “Guerra sem tréguas ao PCC”, me lembro dos passos que demos para chegarmos a situação que vivemos hoje:
Quando a República foi proclamada, os governantes resolveram acabar com a farra que era o uso de drogas no Brasil nos tempos do Império e incluíram no Código Penal de 1890 a criminalização das “substâncias venenosas”, e com isso esse mal seria extirpado…
após cinquenta anos ficou claro que o sonho não havia se tornado realidade, e as drogas haviam se tornado um problema ainda maior, então foi inserido no Código Penal de 1940 previsão para a prisão de usuários e traficantes, e com essas regras mais rígidas, específicas e abrangentes o mal seria eliminado…
após trinta e seis anos ficou claro que o sonho não havia se tornado realidade, mas vivíamos um Regime Militar, e agora, com as forças armadas e sob a vigência dos Atos Institucionais nenhum traficante sobreviveria, só faltava para isso uma lei que colocasse os criminosos em seu devido lugar. Os militares fazem ser aprovada a Lei de Tóxicos de 1976, e dessa vez, as drogas seriam eliminadas de uma vez por todas….
após trinta anos ficou claro que o sonha não havia se tornado realidade, então é aprovada Lei Antidrogas de 2006, pois a anterior não era suficientemente dura, e agora todos comemoraram, afinal, com o endurecimento das penas as facções seriam desmanteladas…
após sete anos ficou claro que o sonho não havia se tornado realidade, e a facção PCC 1533 se internacionalizava – mas com a Lei de Combate ao Crime do Organizado de 2013 as facções seriam desmanteladas…
após cinco anos ficou claro que o sonho não havia se tornado realidade, e as facções se fortaleceram – mas com o novo governo em 2019 que promete o justiçamento dos criminosos, a permissão para que o “cidadão de bem” tenha arma em casa, e a implantação de um pacote de leis com o endurecimento das penas, as facções serão desmanteladas…
Se os policiais tivessem encontrado o saquinho com a cocaína que aquele moleque do Planalto havia ocultado, ele seria preso, mas a facção não teria se enfraquecido.
Marcola e Gegê do Mangue, dois dos principais líderes da facção, há muito foram retirados das ruas, e a facção também não se enfraqueceu, ao contrário do que foi apregoado na época por policiais e membros do Ministério Público de São Paulo (MP-SP).
O Estado e seus justiceiros continuam a caçar as células da facção PCC 1533, e por não acreditarem em espíritos se negam a enxergá-los; e enquanto se concentram em combater o corpo, o espírito da organização criminosa continua a se fortalecer.
Entre a comodidade e a adrenalina
Primeiro Comando da Capital afetando a alma
Encarcerar e matar criminosos não é eficaz, no entanto, essa é a “estratégia” utilizada pelo Estado. Não há um “Plano B”, uma política de controle e segurança eficiente, pois aqueles que habitam os gabinetes e os coturnos não entendem as razões que aqueles garotos têm para entrar no mundo do crime.
Moleques e meninas do corre possuem um espírito contraventor que não é movido por razões materiais.
As ruas estão vivas e se alimentam dos sentimentos comuns difundidos nas conversas, nas rodinhas, nas escolas e nas redes sociais. Cada um que é preso ou morto alimenta ainda mais o imaginário que afeta e fortalece o espírito do grupo.
É interessante como a palavra “afeta” pode transmitir mal seu significado.
Os sentimentos que afetam os jovens insurgentes em sua rodas de conversas ou daquilo que veem nas ruas e nas mídias, alimentam um espírito de corpo ilógico, baseado nas emoções do grupo. Essa miscelânea de emoções e informações levará essa garotada a passar parte de sua a vida buscando saciar desejos racionalmente insaciáveis.
A soma de todas essas emoções são compartilhadas, e mesmo quando uma de suas células é morta ou retirada das ruas esse afeto continua no coletivo daquela comunidade, reforçando-o ainda mais.
Jovens Insurgentes enfrentando as autoridades
O Primeiro Comando da Capital alimentando o medo
Aqueles garotos, assim como milhões de outros, buscam grupos de insurgentes para se unir e ajudar na construção de uma sociedade mais justa, se preciso enfrentando as autoridades do Estado e da família…
… mas na real, eles estão mesmo fugindo da angústia e do tédio e procurando usufruir de momentos de emoção, seja de cólera ou de alegria, tanto faz.
A crise do sistema democrático ocidental leva esses garotos a lutarem por suas demandas sociais fora de um sistema político que não apresenta uma alternativa na qual eles possam se apegar.
Sem opções reais de perspectiva social, seguem a esmo, se juntando a grupos que mantenham vivas as suas esperanças.
Sigmund Freud descreve essa busca constante e inalcançável como pulsão, mas eu diria que essa garotada se alimenta de emoção e não vive sem ela.
O Estado, no entanto, precisa de um inimigo para manter vivo o medo, então dirá que esses garotos são criminosos que os “cidadãos de bem” precisam temer e promete que seus agentes os eliminarão.
Para a manutenção do Estado, alguns precisam ocupar hoje o lugar que já foi ocupado por outros insurgentes, como os Farroupilhas ou os Quilombolas, que, se hoje são considerados movimentos sociais, na época eram descritos como criminosos.
Para se manter o status quo, o ódio da população e dos agentes policiais devem ser direcionados sobre os garotos do tráfico de drogas.
Caminhando sem destino e sem futuro
Primeiro Comando da Capital como predestinação
Todos nós, eu, você e aquela garotada, somos afetados por alguma emoção. Acreditamos que somos senhores de nossos destinos, mas o fato é que não tivemos domínio sobre o que nos afetou durante nossa vida e nos fez ser quem somos hoje.
Alguns de nós nascemos para ser “vasos de ira”, enquanto outros nasceram para ser “vasos de misericórdia” e não adianta reclamar:
As experiências e sentimentos vividos tanto pelo algoz quanto pela vítima se distinguem e independeram de suas vontades, mas os políticos e as mídias utilizarão a mesma régua para medir a ambos.
O Estado para muitos é a bota do policial que só aparece na periferia para intimidar e extorquir, e se esse quadro é real ou foi construído pelo imaginário coletivo não vem ao caso, o fato é que ele alimenta o discurso de ódio e medo de grupos sociais.
Alguns desses garotos se calam e buscam se proteger evitando contato, submetendo-se a misericórdia dos dominantes, mas outros se “mobilizam pelo desejo e não pelo medo”, abandonando a segurança pessoal e aceitando o risco em defesa de um coletivo.
O Primeiro Comando da Capital é um coletivo, formado por insurgentes: indivíduos que não acreditam que possam ser representados e defendidos pelo sistema político e social vigente.
A facção PCC 1533 aparece como uma alternativa que permite que eles atinjam seus objetivos de vida, e, não sendo uma organização estratificada, aceitam ser afetados por ela da mesma forma que sabem que a estarão afetando.
As ações de combate à organização estão fadadas ao fracasso ao se focarem na criminalização dos indivíduos membros da facção, ignorando os afetos que acalentaram seus novos membros e que formam um sólido e ao mesmo tempo etérico “corpo político”.
Os membros da facção Primeiro Comando da Capital se sentem representados e representantes, e acreditam que por lá todos têm a mesma voz e os mesmos direitos, sejam irmãos, companheiros, ou aliados, e por isso valeria a pena lutar “até a última gota de sangue”.
Esse é no fundo o conceito de nação, o “corpo social” do qual todos gostaríamos de fazer parte, mas que a cada dia cada um de nós nos sentimos mais distanciados.
Embora a facção Primeiro Comando da Capital proíba agiotagem, há um caso conhecido de um agiota que financiava ações dentro da organização criminosa paulista.
Financiando as ações da facção PCC 1533
Se existem agiotas dentro do Primeiro Comando da Capital, como eu nunca conheci nenhum?
Essa dúvida me surgiu enquanto o senhor Joaquim Maria me contava detalhes de uma história que eu conhecia de passagem:
A história do Capitão, homem responsável por parte do paiol do 19 e que financiava operações de quadrilhas de integrantes da facção PCC 1533, no Brasil e no exterior.
Meu encontro com Joaquim Maria no Boa Vista
Eu acompanhava um conhecido que foi entregar um pacote para o “patrão das biqueiras” do Boa Vista, e, enquanto aguardávamos no bar na entrada do bairro ao lado da loja de rações, Joaquim Maria se assentou na mureta para conversar conosco…
… e foi assim que consegui os detalhes da história do Capitão e daqueles que lhe eram próximos.
Não negarei o inegável: que eles pertenciam ao mundo do crime e que foi graças ao lado errado da vida que conseguiram concretizar o sonho dosque moram nas periferias:
Normalmente eu altero os nomes dos envolvidos, seja por uma questão de discrição ou para evitar algum processo, mas nessa história há muitos personagens que são de conhecimento público, então optei grafar os nomes reais:
José de Meneses (Mene), Eulália (Lia), (Capitão) Nogueira e Cristiana.
Eles acabaram sendo conhecidos não por pertencerem à facção Primeiro Comando da Capital, mas, sim, pelos laços de amor e amizade que os uniam, e por essa razão é que achei que valeria a pena vir contar a você o que aconteceu com eles.
Nem todos os PCCs agem e vivem da mesma forma e nos mesmos ambientes.
Esses quatro são um exemplo; é falacioso o estereótipo construído em torno de quem são os membros da Família 1533, como você mesmo pode ter constatado se conheceu Mene, Lia, Capitãoe Cristiana.
É fato que eles, assim como todos nós, relativizavam as regras sociais, mas não eram más pessoas.
De certa forma vivemos todos no mundo do crime, aceitando com naturalidade a quebra de normas sociais que nos são impostas e nos desagradam – algo normal para você, talvez seja deplorável para outro.
A morte de um trabalhador com oitenta tiros, disparados por soldados do exército enquanto ele seguia com sua família para um chá de bebê, pode ser vista como um crime bárbaro, consequência de discursos políticos populistas, ou um incidente no qual “o exército não matou ninguém”.
Tudo é relativo; o injusto pode passar a ser o justo ou ao menos aceitável, o importante é haver uma justificativa de autorredenção de nossos pecados:
utilizar o celular dirigindo (só por um minutinho);
dirigir alcoolizado (eu estou bem e vou dirigir com cuidado);
comercializar drogas (se eu não vender, alguém venderá, é a lei do mercado);
deixar de declarar renda ao governo (o brasileiro já paga impostos demais);
assaltar bancos ou desviar dinheiro público (roubar dos ricos ou do governo) etc.
Os quatro, assim como nós mesmos, nos encaixamos em uma ou outra infração e condenamos sem perdão os outros grupos. Contudo, vim aqui para falar sobre a vida de Capitão Nogueira, e não sobre a minha, a sua ou a do presidente Bolsonaro. Voltemos ao assunto…
Amar e trabalhar na facção pcc 1533
Crescendo no seio da Família 1533
Apesar dos crimes que cometeram, eles se viam como boas pessoas, que apenas não aceitavam alguns valores que lhe eram impostos por uma sociedade injusta e desigual, e acreditavam ser seu direito correr atrás do prejuízo.
Eu afirmo isso por conhecer muita gente como o Capitãoe seus amigos, mas o filósofo, sociólogo e jurista italiano Alessandro Baratta, que não os conhece, afirma basicamente a mesma coisa, só que em palavras mais pomposas:
Menee Liatinham quinze anos quando seus pais se mudaram, com a diferença de apenas alguns dias, para o Boa Vista, vizinhos de onde morava Cristiana, que era nascida no bairro e tinha a mesma idade que eles.
Houve algo mágico entre Liae Cristiana, enquanto a mudança descia do caminhão, Cris se ofereceu para ajudar, e naquele momento se tornaram mais que amigas, se tornaram irmãs. Com Menefoi igual, chegou e se interessou por Lia e nunca a trocou por nenhuma outra.
Menee Liaconheceram a adolescência e o amor ao mesmo tempo que as drogas e o lado errado da vida, pois Cristiana era a filha do dono de uma biqueira, e era ela quem ia levar a droga para os vaporzinhos que ficavam nas ruas próximas à casa.
Cristiana era uma garota fantástica, alegre, muito boa de conversa e superinteligente. Menee Liasabiam que tinham sorte de tê-la como amiga, e foi ela quem ajeitou com seu pai para deixar com os dois algumas porções para venderem enquanto namoravam no parque.
Menee Liasempre chegavam juntos e saíam juntos da escola, do parque e das festas, só se separando enquanto Lia ia até a casa de Cristiana para pegar mais mercadoria para vender, ou quando Meneera chamado para fazer alguns corresmais pesados.
Mene da facção PCC cai pela primeira vez
Conhecendo e fazendo negócios com o Capitão
Menenem tinha ainda completado seus dezesseis anos e já estava com uma moto, só não estava em seu nome, mas era dele, paga com a venda de drogas no parque e como piloto em assaltos e distribuição de drogas.
Poucos meses depois de acabar de pagar a moto, deu fuga nas ROCAMs (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) de São Roque à Araçariguama, mas foi pego quando acabou a gasolina, e a família teve que ir buscá-lo no Conselho Tutelar – não ficou preso, mas perdeu sua moto.
De volta para casa, os amigos apresentaram a ele o Capitão.
O jovem já tinha ouvido falar do Capitão, mas como este nunca aparecia na quebrada,Mene nunca tinha visto o ex-capitão da PM. O oficial expulso da corporação também já ouvira falar que Meneera firmeza nas responsase por isso o chamou para conversar.
Uma proposta foi feita pelo homem e aceita pelo rapaz, que saiu do encontro com uma moto muito melhor que a anterior. A partir daí, passou a fazer serviços para o Capitãoquando era chamado, e, apesar da diferença de idade, se tornaram amigos.
Deixando a quebrada
Todo mundo invejava Menee Lia
Após ser capturado pela polícia pela primeira e última vez em sua vida, Menedecidiu que não queria que Liacontinuasse nessa vida, mas ambos continuaram no tráfico até que ele foi engajado para o serviço militar obrigatório.
No dia em que Meneentrou no quartel, Liadeixou a venda de drogas para nunca mais voltar. No dia em que Menedeu baixa do quartel, foi buscá-la na casa dos pais, casaram-se e foram morar em um bairro de classe média em Indaiatuba.
Meneresolve que é chegada a hora de mudar o futuro seu e de sua mulher
Ele não queria mais que ela se envolvesse com o mundo do crime, então deixaram o passado e cortaram os laços que os ligavam ao Boa Vista. Desde então ela não mais teve nenhuma ligação com o lado errado da vida, apenas ele se manteve nos negócios.
Mene,que sempre foi conceituado dentro da facção, viu que seu tempo no quartel foi bem aproveitado, pois a destreza e o conhecimento na manutenção e na operação de armamentos longos lhe permitiu ganhar ainda mais dinheiro.
Desde que se mudou para Indaiá, ele só participava de assaltos em várias partes do país, transportava armamentos das fronteiras para São Paulo e dava instrução de tiro e manutenção de armas longas para os membros da organização.
A mulher do Capitão
É possível amar um homem com o dobro de sua idade?
Uma década se passou nessa nova vida e o casal Menee Liacontinuava apaixonado, como José Maria relatou-me no seu jeito de falar:
O casal teve uma única filha, Ana Sophia, e no dia do aniversário de dez anos da menina parou um automóvel de alto padrão em frente à residência, do qual saltam duas pessoas que foram tão importantes no passado do casal: Capitãoe Cristiana.
Tudo mudou após a mudança de Menee Lia
Pouco tempo depois que os jovensdeixaram o Boa Vista, os pais de Cristiana morreram em um acidente de automóvel e ela, tendo ficado sozinha, acabou indo morar com o Capitão, que a acolheu como se fosse sua filha.
A convivência porém os aproximou de outra maneira, e eles acabaram se casando alguns anos depois, mas, não sejamos hipócritas, a jovem Cristiana nunca esteve realmente apaixonada pelo velho ex-militar.
José Maria com seu jeito professoral de balcão de bar me descreveu assim esse relacionamento:
Qual a surpresa e a felicidade de Menee Liaquando ficaram sabendo que Capitãoe Cristiana estavam chegando para ficar – procuravam um recanto para se aquietarem.
Menee Lia insistiram que ficassem em sua casa, havia quartos de sobra, mas Capitão,que prezava por sua privacidade, já escolhera uma casa em um luxuoso condomínio próximo dali.
Capitãoresolve que é chegada a hora de mudar o futuro seu e de sua mulher
Desde a morte de seus pais, Cristiana não atuava mais nos corres nas ruas, passando a gerenciar os negócios do Capitão e os que lavavam o dinheiro da organização criminosa: lava-jatos, postos de gasolina, uma rede de pizzarias e uma franquia de buffet infantil.
O Capitão continuava com o paiol da facção, o financiamento das quadrilhas, e só para sentir a adrenalina fluindo em seu sangue ia na linha de frente nas grandes operações de ataques a sedes de transportadoras de valores e a pilhagem de pequenas cidades.
No entanto, Capitãoe Cristiana durante uma viagem pela Europa resolveram que mudariam de vida, assim como no passado o fizeram Menee Lia, e trataram de se ancorar nos arredores Indaiatuba, porque lá já viviam seus grandes amigos do passado.
E assim o fizeram. Capitão desmontou seu esquema criminoso, ficando apenas com o financiamento de ações de quadrilhas ligadas ao Primeiro Comando da Capital.
O certo pelo certo os juros não serão cobrados
O certo pelo certo, os juros não serão cobrados
Assim como Capitão, Meneabandona todas as suas outras ações criminosas para trabalhar exclusivamente no transporte de valores e na cobrança de dívidas para seu velho amigo.
No início essa operação seguia tranquila e o lucro para ambos superava o que ganhavam no tráfico e nos assaltos, mas a cobrança de juros em empréstimos foi proibida dentro da facção Primeiro Comando da Capital – o que afetou o lucro da dupla.
Pela novas regras do crime organizado, o financiador das operações podia acertar receber parte do butim conseguido pela quadrilha nas ações, mas não podia cobrar pelo uso do dinheiro em si como se fosse um empréstimo a juros.
Mesmo assim, financiamento de assaltos, da importação e exportação de grandes quantidades de drogas garantiam um lucro enorme, mas quando as operações falhavam a obrigação de pagar continuava com o devedor, que não podia ser extorquido com a cobrança de juros.
Essa é uma das regras do “certo pelo certo e o errado será cobrado”, que foi incorporada para impedir que as famílias dos encarcerados fossem extorquidas por dívidas contraídas pelos cativos, ou que esses, ao sair, tivessem nas costas uma dívida impagável.
No entanto, era no degradé existente entre o preto e o branco que Capitãoe Menenavegavam, buscando se manter pelo lado certo da vida errada sem deixar de receber o que consideravam um ganho justo pelo que foi investido.
Amor e talaricagem na facção PCC 1533
A família 1533, o amor e a talaricagem
A vida continuava tranquila nos negócios e os casais ainda mais unidos e felizes. As saídas de Meneagora eram menos frequentes e mais rápidas, logo voltando para Lia. Já Capitãoe Cristiana quase não se ausentavam de seu lar.
Depois de trocarem muitas palavras sobre coisas totalmente indiferentes à nossa história, Menefixou o olhar na sua interlocutora e aventurou estas palavras:
— Não tem saudade do passado, Cris?
A mulher estremeceu, abaixou os olhos e não respondeu.
Meneinsistiu. A resposta de Cristiana foi:
— Não sei; deixe-me!
E forcejou por tirar o braço de Mene; mas este reteve-a.
— Onde quer ir? Está com medo de mim?
Nisso Menerecebe quase que ao mesmo tempo duas mensagens no WhatsApp. Ele dá uma olhada rápida, vê quem as enviou e resolve não responder naquele momento para não correr o risco de Cristiana se desvencilhar.
Ela realmente ficou embaraçada, como se ela também tivesse algum sentimento por ele que mantinha escondido por conta de seu casamento. Em suas noites ela devia pensar nele enquanto estava deitada ao lado do velho oficial, e Mene percebendo isso insistiu:
— Se não me ama, fala, “de boa”; receberei essa confissão como castigo de não ter casado com você, e sim com alguém que eu realmente nunca amei. Você sabe que eu fiquei com Liaapenas para poder ficar mais perto de você e acabei por me casar com ela apenas para que ela não odiasse você por me tirar dela, e foi você quem quis que nos separássemos.
Um romance do passado escondido de todos
Foi assim que Joaquim Maria contou para mim algo que ninguém sabia sobre o caso que existiu entre Cristiana e Mene quando este já namorava com Lia.
Cristiana ficou naquela época com ele apenas por prazer, e quando viu que o amor de Liaera verdadeiro e sincero deixou o jovem para a amiga, sem nunca lhe dizer nada. Agora, depois de tantos anos, Meneresolve exigir o resgate de uma paixão adolescente.
Para sua sorte, Liachegou, e Menemudou de assunto.
As mensagens de Sininho e Camila Veneno
O destino resolve que é chegada a hora de mudar o futuro daqueles casais
Cristiana se despediu do casal, mas, na saída, Mene ficou a sós com ela e novamente declarou seu amor, afirmando que não sossegaria enquanto não ficassem juntos, nem que fosse ao menos uma noite – ela lhe devia isso.
Quando Meneentrou novamente em casa, comentou com a esposa que Cristiana estava agitada e aconselhou que ela fosse visitar a amiga assim que possível para ver se o que a afligia.
Nunca saberei se o rapaz instigou a mulher apenas por um prazer doentio, para ver se Liahavia desconfiado de alguma coisa ou para testar o quanto a antiga amante conseguiria manter o antigo segredo.
Um descuido e uma descoberta
O que sei é que naquele dia, um pouco mais tarde, Meneteve que ir até o aeroporto de Viracopos retirar alguns equipamentos que chegavam e que deveriam ser levados até um galpão em Pirituba, na Zona Oeste de São Paulo, ainda naquele dia.
Enquanto isso, Lia foi à escola buscar Ana Sophia e deixou a menina para estudar na casa de uma amiga. Ao voltar para casa, sozinha, resolveu visitar Cristiana, conforme havia lhe sugerido o marido antes de sair.
Ela ligou para Menepara avisá-lo onde ela estaria, mas ouviu o telefone tocando no quarto – na pressa de sair, ele devia ter esquecido o aparelho em casa. Ela notou que havia duas mensagens não lidas, e resolveu ler as mensagens.
O casal não tinha segredos, confiavam totalmente um no outro. Foi ela mesma quem havia escolhido a senha do celular para ele. Eram as duas mensagens que Menehavia recebido e não lido enquanto estava tentando convencer Cristiana a voltar o relacionamento com ele.
Mensagem enviada por “Sininho”:
“Mene, se acha que sou trouxa, parabéns, a única coisa que você vai conseguir com isso é fika sozinho. Vc fika com a Camila, ela me disse. ME ESQUECE CARA DE PAU.”
Mensagem enviada por “Camila Veneno”:
“Seu merda, não aparece aqui, Sininho é minha amiga, vc é um bosta e td que vc disse prá ela é mentira, aprende ser homem. Vc me engana com ela, e vc nunca nunca nunca nunca me pagou, não sou sua puta. Rodada é sua mãe! Nunca vem mais.”
Lia sempre foi forte, mas sentou e chorou. Eram essas as missões que deixava o marido por dias fora de casa?
Armas de Viracopos à ZO SP
Uma mensagem misteriosa interrompe a missão de Mene
Menenão havia esquecido o celular, ele o deixara de propósito, como sempre fazia quando saía em um missão – se o sinal do aparelho fosse rastreado, seu localizador apontaria que ele não saiu de sua residência.
O que de fato ele esqueceu, porque se distraiu com Cristiana, foi de apagar as duas mensagens. A mulher não costumava mexer no aparelho, então ele depois resolveria com calma a parada com as duas piranhas de Campinas.
Ele retirou o pacote no aeroporto de Viracopos e já seguia pela Rodovia dos Bandeirantes quando recebeu uma mensagem no aparelho que levava nas operações e que só o Capitãotinha o número:
“Vem para já minha casa, agora. Preciso falar com você sem demora.”
O Capitãosabia que ele estava no meio de um serviço que ele mesmo havia passado. O que podia ser tão urgente assim para interromper o trabalho?
Primeiro imaginou que o esquema foi descoberto pela polícia, que iria interceptá-lo na estrada ou no momento da entrega, mas também poderia ser que o parceiro percebeu alguma trairagem e os compradores poderiam tentar zerá-lo e ficar com o pacote sem pagar.
Se arrependeu de ter aceitado aquele serviço. A paga era boa, mais que o triplo que o normal, mas eles haviam prometido às mulheres que não mais iriam fazer esses corres, só que não resistiram à tentação de uma grana fácil.
Missão cancelada
Quando minutos se transformam em horas
O azar é que já havia passado o último retorno, ficando longe para voltar por Campinas, e até para cortar pela Vinhedo-Viracopos teria que ir até Itupeva, perto de Jundiaí, para fazer o retorno, uma hora e meia de viagem – nesse tempo daria para entregar o pacote…
A cada quilômetro rodado suas emoções se alteravam, ora se tranquilizava, ora ficava ansioso – e havia ainda longos sessenta quilómetros pela frente para se martirizar, e nem o trânsito estava colaborando.
Eles estavam tão sossegados, para que foram se meter nessa? – Menenão se conformava.
“Preciso falar com você sem demora.” – dizia a mensagem.
Isso não estava certo, se o plano tivesse sido descoberto eles tinham uma mensagem combinada para Meneabortar a missão e mocosaro pacote.
Será que a polícia estaria esperando na casa do velho?
Ou talvez não, pode ser que o Capitãoficou muito puto com o cancelamento da missão e queria a companhia do rapaz para se desestressar. Isso tinha acontecido no passado, quando ele era mais novo, mas agora pode ser que o velho militartivesse uma recaída.
Aquela estrada parecia nunca acabar, nunca percebeu como era tão longa.
Pensou em seguir antes para sua casa, pegar a mulher e fugir, desaparecer por uns dias e só voltar depois de ter saído fora do flagrante; ou seria melhor seguir a ordem do companheiro?
Deveria ir a casa do Capitãoarmado ou desarmado, com ou sem o pacote?
Na casa do capitão expluso da PM
Meneresolve se deixar levar pelo destino
Entrou no condomínio e seguiu para a residência do Capitão. Não notou nenhuma reação diferente nos seguranças da portaria, que ligaram para a casa para que o proprietário autorizasse sua entrada.
Mas se a polícia estivesse esperando por ele, os seguranças, que eram todos policiais e guardas civis que faziam bico para o condomínio, não iriam estragar o flagrante, pelo contrário, deveriam estar torcendo contra ele.
“Foda-se”, pensou. Ele iria descobrir em poucos minutos.
Menepodia esperar tudo, menos aquilo
Ele gelou ao chegar próximo à casa e ver que o carro de Liaestava ali. Cristiana devia ter contado ao marido da talaricagem de Mene, e o velho que chamara Lia para resolverem juntos a parada.
Parou próximo, planejando uma forma de se livrar da acusação de Cristiana, pois talarico morre pelo Dicionário da Facção PCC 1533.
Não adiantaria fugir, ele seria caçado pela facção e seria justiçado.
Tribunal do Crime – Agiotagem
O destino não devia ter reunido novamente os quatro
Resolveu entrar, conversar, sentir o clima, ouvir as acusações e depois jogar a culpa em Cristiana, acusando-a de querer trocar o velho Capitãopor ele, e como ele a teria recusado, ela o acusava falsamente para se vingar.
No final ela iria se ferrar e ele se sairia bem, quem duvidaria que ela não tivesse interesse em trocar o velho por ele?
Às vezes o destino nos prega algumas peças.
Menee Capitãohaviam resolvido abandonar a maioria de suas atividades criminosas para se dedicar às suas famílias.
A infidelidade de Menecom outras garotas poderia ter abalado um pouco esse cenário tranquilo, principalmente depois que Liadescobriu as mensagens e resolveu ir à casa de Capitãopara desabafar com Cristiana, sem imaginar que a amiga também havia ficado no passado com Mene, e que agora desejava reatar o caso.
Mas nem Liae nem o Capitãojamais saberiam disso por Cristiana – Meneestava certo, a garota realmente queria ficar com ele, só não tinha coragem de assumir essa posição, temendo que se o marido desconfiasse mataria a ambos.
O certo pelo certo e o errado será cobrado
Quando Liachegou à casa, foi surpreendida por seis homens armados que mantinham Capitãoe Cristiana sentados em um sofá, e ela foi colocada junto a eles.
Cristiana chorava, mas ela e o Capitãoficaram em silêncio por quase uma hora até que Meneentrou e também foi imediatamente rendido.
Com uma voz suave, mas com as gírias próprias da facção, um dos homens avisou ao Capitãoe a Meneque seriam levados para um debate, pois estavam sendo acusados de agiotagem.
Com calma, o homem afirmou que não precisavam se preocupar, que tudo seria esclarecido e logo voltariam para casa se estivessem correndo pelo certo, e que o resto da quadrilha continuaria ali para garantir que eles não tentassem alertar a segurança ao sair.
Capitão saiu conduzindo seu carro, tendo ao lado Mene, e no banco de trás dois homens do Tribunal do Crime.
Passaram-se meia hora até que os que estavam na casa receberam a mensagem de que os homens estavam seguros no cativeiro e que podiam deixar a casa.
A polícia atuando nas ruas
Foi mais ou menos essa história que Joaquim Maria me contou, se bem que acrescentei alguns detalhes que eu já conhecia, assim como outras coisas descobri depois conversando com um ou com outro por aí.
A noite já havia fechado quando o “patrão das biqueiras” no Boa Vista chegou para fechar o negócio, e tudo se resolveu rapidamente – ao lado do bar há uma loja de ração com uma balança, o que facilita tudo.
Por pura ironia do destino ficamos conversando por algum tempo antes de poder voltar para casa, porque uma equipe da força tática parou para fazer a abordagem em alguns garotos que desciam a avenida quase em frente ao bar em que estávamos.
Pedimos mais algumas cervejas enquanto olhávamos a polícia trabalhando. Como os garotos estavam limpos, só receberam os esculachos de praxe.
Me veio uma outra pergunta em mente: será que eles agiriam com esse mesmo procedimento se houvessem câmeras nos uniformes ou se estivessem em um bairro nobre da cidade?
Os policiais, assim como nós mesmos, cometemos uma ou outra infração e condenamos sem perdão os pecados cometidos pelos outros. Contudo, não vim aqui para falar sobre como os policiais fazem seu trabalho, e sim sobre dois casais de criminosos.
(Esse texto é baseado em fatos reais que foram adaptados tendo como base o conto “Casada e viúva” de Joaquim Maria Machado de Assis)