Um grupo do crime organizado não nasce com propósito criminoso. Pode parecer incrível, mas o Primeiro Comando da Capital está aí para provar essa teoria.
… não se pode precisar sobre a origem das instituições criminosas. Todavia, algumas organizações surgiram da necessidade das pessoas em se reunir, não objetivando – ordinariamente – a prática de crimes, e sim, como tática para o combate de possíveis desigualdades sociais vigentes, em tese, pactuadas pelo Estado.
Alvaro de Souza Vieira e Renato Pires Moreira
Mas os pesquisadores não se referiram à atuação da Polícia Militar de São Paulo, que com sua ação no Carandiru gerou a facção PCC.
Na realidade, se refere aos fundadores do Partido do Crime da Capital (PCC), que desceram para campo naquela tarde de chuva em 1991, no Piranhão.
Aqueles oito presos entraram em campo capitaneados por José Márcio Felício, o Geleião, para defender o time da Capital contra o time do Partido Caipira.
Sob fortes provocações mútuas, tais como “Eu vou beber teu sangue”, a rixa inicial degenerou em um briga sangrenta na qual cabeças rolaram (literalmente).
Afinal, quanto mais sangrento, o simbolísmo da ruptura passa a ser mais marcante e duradouro.
Organização criminosa PCC: uma parto difícil
Como afirmaram Álvaro e Renato, aqueles homens não começaram aquele dia o mais poderoso grupo do crime organizado sul-americano com o objetivo criminoso.
Chegaram para aquele jogo após uma série de crimes cometidos pelo Estado e seus representantes e, naquele dia, com a conivência da direção do Piranhão.
… e saíram dos presídios passando a aplicar fora das muralhas o que aprenderam lá dentro:
“sozinhos somos fortes, unidos somos invencíveis”, “todos contra um”, e “até a última gota de sangue”.
Tudo para defender os irmãos contra a opressão do Estado.
A direção imaginou que os “Caipiras” eliminariam os remanescentes do Massacre do Carandiru, sepultando de vez os rebeldes que buscavam melhoria nas condições carcerárias.
Deu errado. A Polícia Militar de São Paulo, a diretoria do presídio, e aqueles oito presos não pretendiam, mas criaram o Primeiro Comando da Capital.
Afinal, se Georges Balandier teorizou, foi o octógono de Geleião que tornou real as imagens, as construções simbólicas e as narrativas míticas da facção PCC.
Tudo começou naquele jogo, mas os elementos construtivos da dominação foram se agregando: a sua fundação, o batismo e as execuções de inimigos e traidores.
A História lentamente se desenrola diante de nossos olhos. Precisamos apenas olhar e compreender de onde vêm e para onde vai e que mecanismo move.
A facção criminosa Primeiro Comando da Capital atua no Uruguai em parceria com grupos criminosos locais, como o Primer Comando Uruguayo (PCU).
O PCU é a responsável pela logística e segurança do esquema de parte do tráfico do PCC em território uruguaio.
A apreensão de grandes carregamentos de drogas, oriundos do Uruguai, em diversos portos pelo mundo comprova a existência dessa rota alternativa de tráfico do PCC 15.3.3.
Uma menor rigidez na fiscalização fizeram do porto de Montevidéu uma opção para suprir o mercado europeu com as drogas colombianas.
Já na Argentina, a principal rota ligando ao Paraguai é a hidrovia do rio Paraná-Paraguai, que possui poucos controles em ambos os lados da fronteira, mas um complexo nível regulatório para controlar as barcaças.
Essa união entre criminosos permitiu cooptar ou coagir os agentes públicos responsáveis pela repressão e de Justiça através de bombas, ameaças, sequestros, e subornos.
O assassinato sem precedentes de três soldados no Uruguai, alerta para a ousadia crescente dos criminosos em um país há muito considerado um dos mais seguros.
No início da manhã de 31 de maio, foram localizados os corpos de três soldados que foram executados na base naval de Fortaleza de Cerro, em Montevidéu.
As prisões sul-americanas passaram a ser centros logísticos, de treinamento e doutrinação do Primeiro Comando da Capital.
O aprisionamento em massa sem critério de separação por periculosidade e faixa etária, permitiu que em 2009 o Primer Comando Uruguayo estivesse atuando depois de poucos meses em contato com facciosos brasileiro e paraguaios dentro das prisões uruguaias.
Graham Denyer Willis e Benjamin Lessing explicam que dentro dos presídios e no meio de milhares de soldados prontos para serem doutrinados na filosofia e nas estratégias da organização fica fácil para as chefias da facção ficarem protegidas de seus inimigos e se dedicarem ao gerenciamento dos negócios da facção.
Grupos criminosos há muito são usados para encobrir as reais intenções de grupos políticos e a facção criminosa PCC 1533 é a desculpa da vez para justificar a corrosão do sistema democrático e das instituições.
Jefferson é uma peça que faz parte de um mecanismo de ataque que vincula o inimigo político a fantasmas com grande poder de assombro no imaginário popular como: o comunismo, as pautas morais e religiosas, e inimigos externos como a Venezuela e Cuba, ou o Primeiro Comando da Capital.
O PCC como ferramenta de ataque as instituições
Tenho como foco de estudo o PCC e acompanho há anos esses ataques, no entanto, nesses últimos 15 dias me surpreendi com a avalanche de réplicas dessa mesma acusação aparecendo em diversas partes do mundo quase que simultâneamente tanto nas redes sociais quanto na imprensa tradicional.
Se houve ou não houve prisões de integrantes da facção durante o governo não faz diferença, há sempre um discurso pronto para justificar o envolvimento.
Quando a presidente Dilma Rousseff apresentou uma apreensão recorde de drogas do Primeiro Comando da Capital, o então deputado Jair Bolsonaro afirmou que aí estava a prova do aumento do tráfico de drogas e que “todos sabem como funciona”, apontando ao procedimento de deixar cair parte da mercadoria para afagar a polícia.
Anos depois, já presidente, Jair Bolsonaro bateu um novo recorde de apreensão de drogas do Primeiro Comando da Capital, e então? Isso seria prova do aumento do tráfico e o envolvimento das autoridades como ele mesmo afirmou poucos anos antes?
O modelo de ataque às instituições, governos e políticos, no entanto, funcionou perfeitamente.
Para o público a que foi dirigido a realidade não importa, os partidos e políticos de esquerda ficaram marcados como tendo envolvimento com a facção paulista e esse discurso segue sendo repetido cotidianamente.
O Timashevsky era filho de servos e foi libertado sob os ventos da humanização das relações trabalhistas e sociais promovidas pelo imperador Alexandre II.
O governante russo enfrentou os gravíssimos problemas sociais e agrários derivados da política de servidão implantada 208 antes e garantiu a liberdade da servidão para os homens do campo, a liberdade de imprensa e das artes.
Por aqui os grupos de extrema direita vincularam com sucesso a imagem das instituições na organização criminosa paulista e esse mesmo modelo está sendo replicado em todos os países do continente americano, África e agora Europa.
Apesar do Paraguai e Uruguai, cujos governos estão alinhados com a direita, serem referências na expansão da organização criminosa, pouco se explora a proximidade política dos governos e instituições, ao contrário de Portugal ou do Chile.
Sr. @gabrielboric CHILE va directo a la Xenofobia TOTAL y la AUTODEFENSA contra la delincuencia extranjera.Como no se da cuenta? DEBE ACTUAR RÁPIDAMENTE Y DAR UNA SOLUCIÓN AHORA YA o tendrá un regadío de muertes en las calles de criminales extranjeros #SantiagoAgoniza#expulsionpic.twitter.com/WW0DNQUrl9— Crva 🇨🇱🇨🇱🇨🇱 (@Crva_01) December 2, 2022
Portugal
El aeropuerto de Países Bajos que se posiciona como el punto de llegada de las drogas mexicanas, el juicio de Genaro García Luna en EE. UU. y el análisis sobre el control del PCC en el narcotráfico en Portugal.
A história talvez não se repita, no entanto, estamos vendo o filme sendo passado novamente em outros prados. A evolução social que ora se processa em vários países pode ser barrada por uma narrativa.
Alexandre II foi morto em um atentado e as reformas por ele implementadas em muito se perderam. Ao escolher a obra de Timashevsky de 1858, quais foram essas as ligações vistas pelos editores do site IA Primavera Vermelha? Seriam essas?
this is a judge of the supreme court, before he was a lawyer for the PCC, (first command of the capital) he was placed to overthrow president Jair Bolsonaro, in Brazil we are living the dictatorship, this judge has no limits! we are a prosperous nation
Alguém, por algum motivo, espalha aos quatro ventos que o Primeiro Comando da Capital (facção PCC 1533) domina o crime, aterroriza a política, a polícia e a população da região amazônica. Nada é menos real.
Quem ganha com esta desinformação?
Penso que as organizações criminosas que atuam na região se beneficiam com o uso dessa antiquíssima técnica: a ilusão hipnótica.
Chamando a atenção para um ponto de modo a ocultar outro, deixando-o fora do alcance da capacidade sensitiva e liberando-o de vencer as barreiras racionais daquele que deve sofrer o engodo, pois as áreas de seu cérebro que deveriam processar de maneira crítica a informação sobre um ponto acaba por desconsiderá-lo em detrimento de outro.
Essa técnica quando utilizada por uma pessoa se chama hipnose e pode fazer sumir uma moeda ou um mação e fazê-las aparecer em outro ponto. Essa técnica quando utilizada por um grupo se chama política e pode fazer sumir uma etnia ou uma floresta e fazê-las aparecer em outro ponto como dinheiro.
O ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles do governo Jair Bolsonaro descreveu essa técnica como “deixar passar a boiada”: enquanto incentivavam e mudavam a legislação para facilitar a exploração ilegal de madeira e minerais na região amazônica chamavam a atenção para a perigosa presença entre os índios yanomâmis do rei da Noruega Harold V ou dos integrantes da facção paulista Primeiro Comando da Capital.
Nem mesmo quando a Polícia Federal apreendeu com 77 Kg de ouro dos garimpos ilegais em terras indígenas o tenente-coronel Marcelo Tasso, o sargento Gildsmar Canuto (ambos da Casa Militar), e alguns soldados da Polícia Militar de São Paulo, poucos meses depois do presidente Jair Bolsonaro haver entregue aos militares paulistas o controle sobre as terras yanomâmis, a imprensa e das redes sociais parecem ter acordado do transe.
Não foram poucas as vezes ao longo da última década que acompanhei os altos e baixos da facção PCC 1533 nos estados do Norte do país, mas a facção nunca chegou a assumir o poder que lhe atribuíram sendo que no artigo “Abandonados, crias do 15 entram em extinção no Acre” faço um apanhado da precária situação dos paulistas por aquelas bandas.
A plataforma de ciência ambiental e conservação Mongabay, em 2021, elaborou um mapa delimitando as áreas de atuação de cada grupo criminoso. No entanto, o projeto de pesquisa denominado “Cartografia da Violência na Amazônia” foi elaborado com dados obtidos nos anos anteriores e refletem a derrocada e o racha da facção Família do Norte (FDN).
Após esse período, parte da facção FDN se consolidou como o Cartel do Norte, que inicialmente se aliou ao PCC e posteriormente tornou-se seu inimigo. O dinamismo das guerras entre as gangues no Norte transformaram o belíssimo trabalho de compilação de dados do projeto Mongabay em um registro de um passado.
No entanto, mesmo esse quadro publicado no artigo Organized crime drives violence and deforestation in the Amazon, study shows captou o efêmero momento no qual Primeiro Comando da Capital esteve em seu ápice, mas mesmo nele podemos notar a insignificância do PCC nessa geleia geral que é a divisão das pelo menos duas dezenas de grupos criminosos nos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Rondônia, Roraima, e Tocantins.
Se em tese a Ilusão Hipnótica é a capacidade de usar fortes ilusões para alterar e controlar os comportamentos e ideias dos seus alvos, na prática é apontar para o poder do rei da Noruega ou da facção paulista para desviar a atenção dos grupos paramilitares e militares envolvidos com madeireiros e garimpeiros em terras indígenas.
O assassinato do embrião jurídico e operacional internacional que germinava na UNASUL dificulta o combate à facção Primeiro Comando da Capital (PCC 1533).
Eu, assim como você ou qualquer outra pessoa pessoa de bom senso, cheguei às minhas próprias conclusões antes mesmo que Lúcia Helena, que estudou profundamente o assunto, concluísse seu pensamento.
Eu e você sabemos que não faz a menor diferença qual foi a conclusão a que ela chegou, afinal nós sabemos que a moral da história foi: “nós não sabemos o que de fato queremos” – fique claro que quando digo “nós”, não me refiro a mim ou a você.
Caso você não se lembre da história de Lady Ragnell, te refresco a memória:
Um cavaleiro enorme desafia o Rei Artur a descobrir qual seria o maior desejo de uma mulher, e, para cumprir essa missão, o monarca e seu sobrinho Sir Gawain saem pelo império fazendo essa pergunta a todas as mulheres que encontram.
Um sistema unificado de combate ao crime organizado
No artigo publicado pelo Instituto de Estudios Internacionales, da Universidade do Chile, os pesquisadores concluem que as organizações criminosas transnacionais só seriam contidas se houvesse legislação que desse amparo ao combate internacional.
Essas entidades seriam moldadas para combater especificamente às organizações criminosas latino-americanas, o que possibilitaria a implementação de medidas legais e operacionais feitas sob medida para uma realidade emaranhada típica do subcontinente:
Apenas a criação de uma legislação que possibilitasse a investigação, a prisão e a condenação de criminosos em qualquer nação sul-americana teria chance de vencer a permeabilidade dos grupos criminosos transnacionais.
Pirotecnia Midiática PCC 1533 e polícia
Nosso mais profundo e sinistro desejo
Há mais de uma década ironizo a cobertura midiática das ações promovidas pela“Operação Ágata” e cada novo passos na implementação do SISFRON (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras) por servirem apenas como pirotecnia:
A “Operação Ágata” e o SISFRON são ferramentas de combate aos crimes desenvolvidos e operados por profissionais altamente preparados e dentro de um planejamento estratégico para atender aos mais profundos e secretos anseios da população.
Nós não queremos que Lúcia Helena venha a nos esclarecer de qual seria a moral por trás da história do casamento de Sir Gawain e Lady Ragnell simplesmente porque nós sabemos o que queremos ouvir, e talvez não seja exatamente o que ela viesse a nos dizer.
Da mesma maneira policiais e militares que atuam nas operações contra as drogas não querem ouvir que estão atuando apenas em um picadeiro montado para que grupos políticos mantenham entretidos os cidadãos, alimentando-se do medo como os Amanojakus.
As armas e as drogas continuam sendo entregues apesar da eficácia do sistema que não visa de fato a eliminação do tráfico e sim a espetacularização do combate ao crime.
Rei Artur UNASUL e facção PCC 1533
Manter vivo o inimigo para garantir sua própria existência
Eu, assim como você ou qualquer outra pessoa pessoa de bom senso, sei que o ex-presidente Jair Bolsonaro esteve certo em abandonar a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) por esta ser, segundo ele, um organismo de viés ideológico gramsciano que se baseia em estudos empíricos.
Artur e Gawain não descobriram a resposta para a questão do gigante por terem justamente utilizado uma técnica empírica: perguntar às mulheres sobre seus desejos.
Assim como as mulheres arturianas, nós não sabemos realmente o que queremos e do que precisamos, e daí vem a beleza da política: entender nossos desejos mais profundos e secretos.
Certa vez Fernando Haddad afirmou ao AntiCast que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva possuía esse dom:
O que almejamos, eu, você e qualquer outra pessoa, é que um bom vendedor nos ofereça esperanças e nos mantenha como se estivéssemos assistindo a um filme de suspense na telinha, nos enchendo de medo e expectativa a cada instante.
Crê que eu esteja errado em minhas conclusões? Bem, tenho 57.797.847 razões para discordar.
O governo brasileiro abandonou a UNASUL porque sua política de combate ao crime organizado difere daquelas propostas pela entidade:
Fortalecer a segurança cidadã, a justiça e a coordenação de ações para enfrentar o Crime Organizado Transnacional.
Propor estratégias, planos de ação e mecanismos de coordenação, cooperação e assistência técnica entre os Estados membros para influenciar as áreas mencionadas.
Promover a articulação de posições de consenso sobre temas da agenda internacional relacionados à segurança cidadã, à justiça e à ação do Crime Organizado Transnacional, favorecendo a participação cidadã e atores sociais e cidadãos no desenvolvimento de planos e políticas nos referidos itens
Viabilizar o intercâmbio de experiências e boas práticas, fomentar a cooperação judiciária, as agências policiais e de inteligência e formular diretrizes sobre prevenção, reabilitação e reintegração social.
Enquanto isso o Primeiro Comando da Capital e o ex-presidente Jair Bolsonaro parabenizam a todos aqueles que apoiaram o fim da integração internacional proposta pela UNISUL, assim o espetáculo pode continuar com policiais, militares e helicópteros em voos rasantes.
Governo Bolsonaro termina com poucos resultados
Bolsonaro, então candidato à presidência da República em 2018, afirmou que a prova que o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) fracassou no combate ao tráfico transnacional era os constantes recordes de apreensões de drogas pela polícia, algo que segundo ele, só aconteceria se houvesse um aumento do fluxo. Bolsonaro foi eleito e no final de seu governo a polícia apresentou um recorde no número e na quantidade de drogas apreendidas.
Apesar do Brasil durante o seu governo ter abandonado diversas práticas multinacionais de combate às facções criminosas, em especial ao Primeiro Comando da Capital, o país promulgou em 2020 Acordo Quadro de Cooperação entre os Estados Partes do Mercosul e Estados Associados para a Criação de Equipes Conjuntas de Investigação (Decreto 10.452/2020).
No entanto, apesar de ter avançado, os governos latino-americanos nos últimos anos deixaram a desejar, optando por ações pirotécnicas, inflamando o discurso em detrimento à ações investigativas efetivas e os recentes ações do Novo Cangaço e que a ampliação das áreas de atuação do Primeiro Comando da Capital em Canindeyú e no Norte da Argentina.
Matéria assinada por Rosendo Duarte no prestigiado site ABC Color garante que o crime organizado espera incrementar suas ações em Canindeyú após a posse do presidente brasileiro Luiz Inácio da Silva que se deu em 1º de janeiro de 2022:
Tendo a discordar. A troca de Bolsonaro por Lula me parece como trocarmos um espantalho por uma equipe de segurança — enquanto um aparenta eficácia, o outro apresenta resultados.
Muitos dizem que o cangaço e as facções criminosas são, antes de mais nada, um fenômeno social. Seria o Primeiro Comando da Capital de hoje o cangaço do passado?
O Novo Cangaço — um grupo ou uma modalidade criminosa?
No Brasil, o Novo Cangaço é uma modalidade criminosa que descreve a ação na qual grupos do crime organizado dominam apenas pelo tempo de duração de um ataque planejado em uma região delimitada — um tipo secular de crime, no entanto, o Primeiro Comando da Capital (facção PCC 1533) profissionalizou os procedimentos.
Autoridades do Paraguai e da Argentina discutem estratégias para se contrapor aos ataques do Novo Cangaço e vejo tanto a imprensa e quanto autoridades utilizando o termo “Novo Cangaço” para designar uma facção criminosa como se fosse um nome próprio:
Não descarto que possa haver algum grupo que tenha se apropriado do nome, no entanto, o importante é estudar o fenômeno em si, como demonstra a morte de diversos membros das forças de segurança e a prisão de um número cada vez maior de profissionais do crime que se especializaram nessa modalidade criminosa.
O Primeiro Comando da Capital já possui em território paraguaio 700 integrantes conhecidos pelas autoridades e suas ações tem se concentrado nas províncias paraguaia e argentina próximas à fronteira com o Brasil.
Devido ao planejamento, a sofisticação na execução, aos contatos dentro das forças de segurança pública e privada, e o alto investimento envolvido é impossível os agentes de rua reagirem com eficácia aos ataques, e sua coerção só é possível através de um sofisticado processo de investigação com respaldo em legislação específica — o que pode contrariar interesses políticos.
Esse trecho do “Temacast Lampião” poderia estar se referindo tanto ao bando de Lampião quanto a um grupo de criminosos de hoje nas favelas e comunidades carentes brasileiras e agora ultrapassam a fronteira em direção ao Paraguai e a Argentina:
O Temacast, o cangaço e a facção PCC 1533
O Primeiro Comando da Capital é fruto de nosso tempo, mas não tem como não notar as semelhanças entre esse fenômeno criminal e a era de ouro do cangaço ao ouvir o podcast “Lampião”, do canal Temacast.
Leia este texto, que é uma transcrição de parágrafos inteiros (como o acima), Em alguns deles, substituo a palavra “cangaço” pelo termo “facção criminosa”, e a descrição do passado se encaixa como uma luva para os dias de hoje, mas, se preferir, ouça você mesmo o bate-papo entre os acadêmicos Francisco Seixas, Larissa Abreu, Igor Alcantara e Fabrício Soares: Temacast
Facções criminosas: milicianas e criminosas
Hoje não há uma clara diferença entre os facciosos oriundos do mundo do crime e aqueles que vieram das milícias, no entanto os milicianos se originaram da mesma forma que os antigos cangaceiros do nordeste.
Os primeiros milicianos tiveram sua origem como meros “prestadores de serviço”, aí o termo prestadores de serviço tem que ficar entre aspas, porque eles prestavam serviços de jagunços para os chefes políticos locais e pequenos empresários das comunidades.
Por outro lado, as grandes organizações criminosas brasileiras cuja origem se deu no mundo do crime, como o Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital e Família do Norte, tiveram sua célula mater na antiga Falange Vermelha (FV), do Rio de Janeiro.
Os primeiros grupos facciosos de que se tem relato eram, na verdade, meros grupos de presos que visavam apenas se autoproteger dentro das muralhas do sistema carcerário, mas que passaram a atuar fora das celas, inicialmente em suas próprias comunidades.
Conta-se que já em 1840, em Feira de Santana, na Bahia, havia um cangaceiro chamado Lucas da Feira, que tinha uma maneira de agir muito parecida com a de Robin Hood: ele fazia os saques e distribuía parte do butim para a comunidade carente.
Assim como o cangaceiro Lucas da Feira, os facciosos faziam uso de extrema violência e crueldade para garantir o sucesso de suas ações, contudo eram aceitos com certa naturalidade e até com boa vontade dentro de suas bases territoriais.
O Lampião de ontem, o Marcola de hoje, e o antagonista de amanhã
Da forma com que a imprensa e a história apresentam Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, tem-se a impressão que ambos foram fundadores dos movimentos que representam: facções criminosas e cangaço.
No entanto, foram apenas frutos de um processo que os antecederam em décadas.
Creio que você, assim como eu, não possui uma bola de cristal que possa lhe dizer como o futuro há de julgar Marcola do PCC, mas, se me basear no passado, em Lampião, posso afirmar que o antagonismo se manterá vivo por muito tempo:
odiado, pois sob o ponto de vista da lei, Marcola é, assim como Virgulino foi, um bandido, um criminoso sanguinário que matava e fazia negociatas sujas com políticos; e
amado, pois sob o ponto de vista político, Marcola é, assim como Virgulino foi, uma dessas pessoas que não aceitava o modelo oligárquico, no qual uma minoria privilegiada tem acesso aos bens de consumo e a ampla maioria da população vive disputando um espaço de sol na miséria.
Jesuíno Alves de Melo Calado, o cangaceiro Jesuíno Brilhante, buscava contestar o sistema da forma como ele estava montado, ao contrário de Lampião e Marcola, que se integraram, cada um de seu jeito, ao sistema, se aliando a políticos conservadores.
Esses ícones do Estado paralelo tiveram suas vidas esmiuçadas por dezenas de estudiosos em milhares de trabalhos acadêmicos e audiovisuais. No entanto não há consenso, alguns refletiram a visão daqueles que combateram o cangaço ou que tiveram seus antepassados mortos ou saqueados por eles; já outros, se basearam nos depoimentos do povo que convivia com eles.
Talvez nunca saberemos, afinal, se era um deus ou um diabo que reinava na terra do sol, assim como não sabemos, hoje, como serão vistos, no futuro, aqueles que reinam nas periferias, nos morros ou dentro do Sistema Prisional.
Qualquer grande líder político, militar ou religioso desperta essa reação de amor e ódio, e, se fizermos uma análise profunda, encontraremos grandes razões para amá-los e odiá-los ― não foi diferente com Lampião e Jesuíno Brilhante, e não será diferente com Marcola.
O Estado como controlador da violência
Lampião comandou seu homens com pouca resistência no período que sucedeu a Proclamação da República, em 1888, e Marcola viu o fortalecimento de sua organização após a derrubada do Regime Militar e com a Promulgação da Constituição Cidadã de 1988.
Espécies nocivas que frequentam o ambiente se proliferam com rapidez pela falta de predadores naturais, e assim o cangaço e as facções criminosas se fortaleceram na ausência do Estado nos presídios, nas periferias e no sertão nordestino.
Assim como no passado, o medo impera naqueles que comandam os diversos níveis de poder mas não temem a criminalidade tanto quanto temem a eles mesmos:
Os fazendeiros e políticos locais do século XIX e o governo federal temiam a política dos governadores. Um século e meio após, se um candidato à presidência propor a federalização ou a municipalização da segurança pública ― os governadores pirariam!
Dentro dessa realidade, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) não consegue ser implementado deixando uma via aberta e bem pavimentada para as organizações criminosas enquanto os diversos entes federativos lutam pelo poder.
Getúlio Vargas para acabar com o PCC?
Até hoje, não há dados confiáveis sobre as questões de Segurança Pública. Cada estado é responsável pelo cadastramento de seus cidadãos e dos criminosos, através da emissão de documentos, e estes não estão disponíveis em tempo real.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não aposta em um novo salvador da pátria e explica suas razões:
No passado também foi assim, pelo menos até que chegou o cara, o salvador da pátria! Getúlio Vargas derruba o poder dos governadores e dos senhores locais e encerra a era de ouro do cangaço.
Talvez apareça um novo messias para nos salvar, talvez o Sistema Único de Segurança Pública dê mais um passo em seu lento deslocamento em direção ao aperfeiçoamento, ou talvez deixemos como está para ver como é que fica.
Pedro Rodrigues da Silva, o Pedrinho Matador, conhece o sistema prisional de São Paulo como poucos. Ele ficou sem ver a rua de 1973 até 2007 e de 2011 até 2018 — viveu mais de 40 atrás das grades e por lá, ele conta que viu mais de 200 presos serem mortos enquanto esteve por lá, sendo que mais de 100 foram ele mesmo que matou.
Viveu no cárcere no tempo do Regime Militar, da redemocratização e dos governos com leve viés progressista, mas mudança mesmo, houve quando a facção paulista despontou como hegemônica, acabando com as diversas gangs e grupos dentro das cadeias e presídios.
Sobre o Primeiro Comando da Capital ele afirmou durante uma entrevista:
“Fui [convidado a entrar no PCC], mas não entrei. Ali é o seguinte: depois que surgiu o partido, você vê que a cadeia mudou. Não morre ninguém porque o partido não deixa. É paz. Paz para a Justiça ver. Se começa uma briga, eles seguram. Eles também ajudam quem sai, arrumam trabalho.”
A sociedade vive momentos críticos, o que existe de pior em nós está tomando as ruas e os Justiceiros da Fronteira estão aí para provar.
Não presto homenagens a criminosos mortos.
Presto solidariedade às famílias enlutadas, cujos filhos foram engolidos pela podridão que nós deixamos escapar das fossas mais profundas de nossa sociedade.
Descansem em paz guerreiros, torturados e mortos na covardia. Fiquem na certeza que a justiça se fará, porque Deus é fiel e a Família é forte.
Descansem em paz você que está indiferente ou festejando a morte dos garotos e das garotas na fronteira achando que não é um problema seu.
Descansemos em paz todos nós enquanto podemos — com a mente tranquila dos que ignoram a chegada das grandes tempestades.
O mundo do crime não é para os fracos.
Há dez anos, eu e o Primeiro Comando da Capital andamos lado a lado — ele no lado dele, eu no meu lado; ele observa de perto minha caminhada, eu observo de perto a caminhada dele.
Nesses dez anos, assisti muita morte cruel. Vi execuções ordenadas pelo Tribunal do Crime do PCC, mortes em invasões de comunidades rivais e durante operações de assaltos — geralmente chegavam gravadas e ao vivo.
O mundo do crime não é para os fracos, mas o mundo do crime tem sua ética.
A mais cruel de todas havia sido até ontem a decapitação de um integrante do Comando Vermelho com um facão sem fio — uma morte lenta e dolorosa em uma guerra entre facções onde quem entra sabe que é para matar ou morrer.
Considero insana essa guerra e desajustados os integrantes das organizações criminosas beligerantes, no entanto, entendo que ambos os lados consideram uma guerra justa pelo domínio de territórios, mercados e pela própria sobrevivência.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética, mas e “as pessoas de bem”?
Ontem fui surpreendido com a mais cruel e insana de todas as mortes, executada por sádicos que antes da era Bolsonaro se limitavam a se masturbar assistindo filmes de morte em seus computadores e torturar animais domésticos, mas que agora ganharam as ruas.
Os “Justiceiros de la Frontera” ou os “Justiceiros da Fronteira” cortam um garoto ainda vivo, membro por membro, enquanto o jovem grita desesperado, nu, preso por correntes no pescoço, mãos amarradas nas costas e as pernas seguras cada uma por um homem.
A captura e execução não condiz com o modus operandi das milícias e das organizações criminais brasileiras, mais parecendo cenas de filmes de sadismo trashs que os “cidadãos de bens” assistem excitados em suas alcovas.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética, mas as “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro?
De dentro de um presídio no Paraguai me chega a informação de que o boato que corre por trás das muralhas é que esses dementes são patrocinados por comerciantes dos dois lados da fronteira e que suas ações contam com a participação ou facilitação de policiais civis do Mato Grosso do Sul.
Confio que a Polícia Civil do Mato Grosso do Sul, que está investigando os assassinatos dos Justiceiros, e que está realmente empenhada em descobrir os culpados, assim como, no passado, confiei que o delegado Fleury elucidaria as execuções.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética, mas as “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro, estarão dispostas a entrar nesse mundo?
O Secretário de Segurança do Mato Grosso do Sul Antonio Videira demonstrou que a insanidade do presidente Bolsonaro apodreceu a alma de nossa sociedade, ao relativizar a importância da vida, da ação do Estado e da Justiça, ao mesmo tempo em que ressaltou a importância do patrimônio privado:
“Os crimes contra o patrimônio causam clamor público e enchem a região de polícia e isso atrapalha o negócio deles (traficantes)”.
Videira age da mesma forma que o presidente quando este grava um vídeo condenando a vacina e o isolamento social e depois grava outro vídeo dizendo que nunca foi contra a vacina e o isolamento social e que a culpa é do Supremo que não deixou agir.
Videira sabe que as facções brasileiras e os clã paraguaios não mandam recado em bilhete para outros criminosos, essa é uma ação típica da milícia, mas com uma característica única que só poderia ter sido formada dentro do nosso caldo social:
Videira sabe que traficantes ligados ao Primeiro Comando da Capital estão entre os torturados e mortos.
Videira sabe que está mentindo, mas ao que faz parecer, quer proteger os comerciantes, agentes públicos, e filhotes sádicos da elite que estariam envolvidos nos crimes.
“Cidadãos de Bens” armados, com dinheiro e poder, deixam aflorar o sadismo e a podridão que antes tinham que conter, apoiados por uma mídia muitas vezes manifestamente favorável aos justiçamentos seletivos, com a participação ou complacência dos agentes públicos de Segurança Pública e apoiados por parte ensandecida da população e empoderatos todos pelo discurso do presidente da República e seus asseclas.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética. As “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro estão a entrar para esse mundo, mas aguentarão as consequências?
Antigamente era comum ouvir de um criminoso: “o senhor está fazendo o seu serviço”.
Em maio de 2006 o mais poderoso estado do Brasil parou frente ao poder do Primeiro Comando da Capital, que comandou ataques em todo o estado, matando mais de 59 agentes públicos: policiais, bombeiros, guardas civis municipais e agentes penitenciários
Em torno de mil pessoas, incluindo: agentes públicos, criminosos e civis que nada tinham a ver com o assunto. Quase todas mortas por policiais em serviço ou em horário de folga.
Pouco se fala sobre a causa dessa chacina: a política de justiçamento e de extorsão por parte de agentes da polícia com a complacência da imprensa, das classes políticas, do Ministério Público e da Justiça — acreditaram que não deveria haver lei para os fora da lei.
O caso Castelinho de 2002 foi emblemático: a polícia infiltrou um informante dentro de um grupo criminoso, criou uma falsa oportunidade de assalto, incentivou a reunião de criminosos para a falsa ação, emboscaram e mataram doze integrantes da facção PCC.
Hoje é difícil ouvir de um criminoso: “o senhor está fazendo o seu serviço” — quebrou-se uma ética que existia entre o mundo do crime e as forças de segurança.
A Polícia Militar de São Paulo sentiu isso na prática em 2011 e 2012 quando voltou a ser atacada pela organização criminosa paulista.
Mês passado em São Carlos, foi condenado a 16 anos de prisão um dos últimos integrantes do Primeiro Comando da Capital que ainda aguardavam julgamento pelas mortes de policiais naqueles dois anos — segundo a BBC Brasil, os dados demonstram que a Força Tática e a Rota receberam o recado e diminuíram a taxa de letalidade a partir de 2013.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética. As “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro estão a entrar para esse mundo, mas aguentarão as consequências? Quantos morrerão em uma nova guerra e a quem ela interessa?
Anabel era uma garota que não tinha nenhum envolvimento com o crime, ao contrário de seu namorado o Mateo, e os jovens namorados foram mortos em uma choperia em Pedro Juan Caballero — outros garotos mortos, até para desmentir a ridícula versão do Secretário de Segurança Antônio Videira, não eram assaltantes, mas sim traficantes.
Eu já assisti dezenas de punições de ladrões que roubam em comunidade e são executadas pelo PCC: são espancamentos e muito raramente um tiro ou uma facada no pé ou nos dedos — jamais tortura e execução, e os executores citam o nome da facção.
A população que aplaude e se excita em seus sofás assistindo às mortes pela tv ou em sua segurança pelos celulares e computadores está alimentando um monstro confiando que o mal não irá atingi-las.
Se a retaliação vier, como sempre será sobre as forças de seguranças, principalmente policiais civis e guardas civis municipais que estão na linha de frente e não aqueles que se trancam dentro das delegacias e por trás dos muros de suas residências e comércios.
Uma guerra entre as forças de segurança e o Primeiro Comando da Capital pode interessar justamente a Bolsonaro e os criminosos que o acompanham e sustentam, mas não às centenas famílias de moleques, garotas e agentes públicos que tombarão nas ruas.
O mundo do crime não é para os fracos, o mundo do crime tem sua ética. As “pessoas de bem” lideradas por Bolsonaro estão a entrar para esse mundo, mas aguentarão as consequências? Quantos morrerão em uma nova guerra e a quem ela interessa? Não a mim, não a você e muito menos a todas as famílias enlutadas pela covardia e a podridão dessa onda que está a nos afogar.
A confusa configuração do crime organizado no estado do Espírito Santo é consequência da política carcerária do governador Renato Casagrande.
Se você entende o que se passa no estado do Espírito Santo, só agradeço se me procurar no privado para contar, mas acho que nem quem é do mundo do crime consegue entender o que se passa na mente e nos corações dos crias capixabas.
As repórteres Kananda Natielly e Taynara Nascimento do Tribunaonline entrevistaram diversos especialistas e publicaram um artigo repleto de contradições, não por incapacidade ou desleixo, mas porque cada entrevistado apresentou um quadro diferente.
Eu só sei que o sangue continua correndo nas ruas do estado, como aconteceu há poucos dias, quando dois homens em uma moto executaram um rapaz e feriram uma mulher que estavam em um ponto conhecido de tráfico em Vila Velha, e assim como ele, já morreram uns 50 nas disputas sobre o domínio dos pontos de tráfico em tempos recentes.
Vila Velha resume a zona que é o crime organizado no Espírito Santo
Até aí parece ser uma disputa fácil de entender e similar ao que ocorre em outros tantos recantos do Brasil: PCC e CV disputando espaço com seus aliados locais. Só que não! Como tudo é confuso no Espírito Santo esse caso não poderia ser diferente:
Em 2019, uma das principais lideranças do Ulysses Guimarães e do 23 de Maio, seria Catraca da Gangue da Pracinha, como é conhecido Samuel Gonçalves Rodrigues, que era do Comando Vermelho e trocou a camisa para correr pelo Primeiro Comando da Capital.
Após sua prisão, as mortes pararam por um tempo, mas seus domínios que eram com ele do CV e passaram para o PCC, e agora voltaram para o CV sendo disputados pelo PCC e pelo PCV — simples para você? Para mim não, mas pode ficar ainda mais confuso:
Gangue da Pracinha do Catraca rachou após sua prisão. Marcola, como era conhecido Marcos Vinicius Boaventura, gerente de Catraca no Ulysses Guimarães, assim como os outros que não quiseram voltar a vestir a camisa do CV foram expulsos da quebrada.
Como zona pouca é bobagem: tem o Terceiro Comando Puro
Marcola se mocozou no Terra Vermelha do Terceiro Comando Puro (TCP), mesmo Catraca sendo do PCC, e de lá fez ataques aos antigos aliados no Ulysses Guimarães e Morada da Barra, tendo matado em uma única noite quatro integrantes da Gangue da Pracinha, mas como acabou preso por pelo menos uma das mortes, não conseguiu retomar as biqueiras que permaneceram ligadas ao Comando Vermelho.
No Centro de Vila Velha, o Morro da Penha e o Morro do Cobi de Baixo estão sob o domínio do Primeiro Comando de Vitória, que parece ter uma convivência pacífica e comercial com os crias do Comando Vermelho.
Colado ao norte de Vila Velha fica o Porto Santana, também conhecido como Morro do Quiabo no município de Cariacica, local conhecido como um importante centro de distribuição de drogas e disputado à sangue pelos diversos grupos criminosos.
O Porto de Santana está nas mãos do Terceiro Comando Puro (TCP), facção carioca aliada ao Primeiro Comando da Capital de São Paulo que é aliado do Primeiro Comando de Vitória que disputa com o Terceiro Comando Puro — vixi, olha a zona!!!
Se em Vila Velha TCP e PCV disputam, em Vitória o Terceiro Comando Puro está em várias comunidades, entre elas a de Itararé, onde TCP fecha com o TCV.
“Divide et impera” — separar os inimigos para governar
Muito se discute se a separação dos presos por facção dentro do sistema penitenciário é a melhor opção. Os defensores da secção apontam algumas vantagens na adoção desse procedimento:
redução da violência dos conflitos entre os aprisionados;
redução das mortes violentas no sistema;
menor risco para os agentes prisionais por contar com uma pacificação e hierarquização da comunidade carcerária; e
dividir para governar — a divisão impede que os diversos grupos formem coalizões para agir no mundo do crime fora das muralhas.
Estados como São Paulo e Mato Grosso do Sul fazem uma rigorosa triagem dos presos, colocando-os cada qual em seus grupos facciosos, medida tomada após a disseminação do Primeiro Comando da Capital pelo sistema prisional.
Criando e disseminando a semente do crime
Até meados da década de 1980, os cárceres paulistas eram entregues aos grupos que se impunham seu domínio pela força e violência — era comum cortar cabeças de presos “sorteados” para protestar contra a superlotação das carceragens, e o sorteio era feito entre os que não faziam parte dos grupos.
Já na época, haviam os que defendiam que esse grupo deveria ficar em uma única unidade prisional, no entanto, o grupo majoritário defendia que o Estado não deveria reconhecer “as autodenominadas facções dos presos”.
E assim foi feito, e as constantes transferências espalharam a filosofia do Primeiro Comando da Capital para todas as unidades do estado de São Paulo, e quando o governo viu o erro, em maio de 2006, já era tarde e o PCC paralisou todo o estado e o deixou refém da criminalidade.
Tudo Junto e Meio Misturado sob o governo de Renato Casagrande do Espírito Santo
Hoje, vários estados adotam a separação, no entanto outros optam por manter os diversos grupos criminosos sob o mesmo teto, alegando que o Estado não pode reconhecer grupos criminosos e que ao concentrar os integrantes em uma unidade os administradores ficam mais vulneráveis às pressões internas.
Todos nós conhecemos o resultado dessa opção.
Os noticiários internacionais, que raramente lembram do Brasil, expuseram o fracasso dessa política prisional tupiniquim adotada no Amazonas e no Rio Grande do Norte após os massacres do COMPAJ e de Alcaçuz e a desmoralização de seus governos.
O estado do Espírito Santo na administração do governador Renato Casagrande segue pelo mesmo caminho:
“Não realiza a separação de internos em galerias ou unidades por auto declaração de participação em facções ou organizações criminosas”
“Lá tá todo mundo junto, tá ligado? Mas é mais essa parada, PCV, PCC, Primeiro Comando do Estado, tem essas paradas todas, fica todo mundo junto desembolando os cauôs, desembolando as tretas.”
me conta um conhecido de dentro do sistema capixaba
A experiência mostra que a mistureba de presos só pode dar ruim, no entanto, esse caos instalado propositalmente pelo governo dentro do sistema prisional capixaba parece que está conseguindo criar um padrão único no estado.
A pacificação dentro dos presídios não está acontecendo por ação ou eficiência do poder público, mas pela negociação caso a caso dentro dos diversos grupos criminosos que estão por trás das muralhas.
Essas negociações entre os crias das diversas facções do crime no dia a dia dentro do sistema prisional se reflete nas quebradas com parcerias de negócios sendo fechados com grupos que, em outros estados, estariam se matando.
Para manter a paz dentro dos presídios, as tretas da rua passam a ser resolvidas nas ruas de forma pontual sem comprometer as organizações criminosas — o que explicaria em parte porque o caso do Catraca e Marcola não espalhou a guerra para todo o município, estado e para dentro do sistema prisional.
Uma guerra entre facções pode empilhar corpos nas periferias e presídios, jogando as nuvens a taxa de homicídios a 71,8 (Roraima), 54 (Ceará) e 52,5 (Rio Grande do Norte), e no outro extremo com a pacificação derrubar essas taxas a 6,5 (São Paulo), já o Espírito Santo ficou com 24,8 pois não tem uma verdadeira guerra entre facções, mas possui disputas individuais.
Dúvidas que não querem se calar
O caso de Vila Velha e Cariacica pode indicar que a política prisional do governo do estado do Espírito Santo do governador Renato Casagrande está perdendo o efeito de unir os grupos criminosos rivais?
Se assim for, haverá mais de mortes nas periferias ou as organizações criminosas estabelecerão novos e mais amplos acordos de paz e cooperação?
O governo está gestando uma nova geração de criminosos que correrão juntos, mesmo que divididos?
Se houvesse mais armas nas ruas, ele colocaria outra no lugar, “tomaria um salve para aprender”, e seguiria sua vida — como vi isso algumas vezes.
Sinto saudades daquele lugar, da pequena ponte sobre o córrego, onde os garotos aguardavam de sinaleiros, e dos cavalos que pastavam sossegados no meio do capim gordura — talvez fosse vê-los o que me acalmava.
Dificilmente alguém me trás boas lembranças, mas ao ler o trabalho de André,revivi aquele dia e me senti de volta naquele lugar. Devo isso a ele.
E por falar em armas legalizadas, olha só como o PCC consegue comprar armas legalizadas e com descontos! pic.twitter.com/oY8MDNFSFK
Houve um tempo onde as armas sobravam nas mãos de policiais, civis, e criminosos.
Viaturas policiais com armas frias, tanto para o uso ilícito dos próprios policiais como para entrouxar em algum desafeto.
Traficantes com armas frias, tanto para sua segurança pessoal e de seu negócio como ferramenta de convencimento nas cobranças.
Hoje, no entanto, é raro a polícia paulista andar com arma fria mocosada na viatura, assim como são raríssimas as abordagens que encontram indivíduos armados, principalmente em biqueiras, e são milhares de abordagens diárias.
As armas curtas foram controladas tanto pela aprovação do Estatuto do Desarmamento de 2003 durante o governo Lula quanto por ordem do Primeiro Comando da Capital (PCC).
O Estado retirou as armas das ruas para diminuir a taxa de homicídio, e o PCC para acabar com as guerras entre as biqueiras dentro das comunidades.
Assim como o governo, as lideranças da facção PCC 1533 perceberam que esse genocídio é ruim para a sociedade e para a economia, exceto para os fabricantes de armas e seus defensores.
PCC e Bolsonaro no lucrativo mercado de armas
Assim como um vírus, a organização criminosa Primeiro Comando da Capital evolui exponencialmente e já se prepara para atuar em um mercado de armas com menor custo e maior oferta e demanda.
André, citando Evan Ellis e Daniel Sansó-Rubert, explica essa mudança na dinâmica nos negócios de armas curtas ilícitas:
Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2020 nos países com maior influência da facção Primeiro Comando da Capital:
Sei que não existe corrupção no governo, principalmente por parte de Bolsonaro e seus filhos, e que com certeza eles nada recebem do mercado internacional de armas, que movimenta anualmente 80 bilhões de dólares.
Se estivessem, seria o que se chama de “corrupção sistêmica”, aquela na qual o agente público de alto escalão cria situações que facilitam em larga escala a atuação das organizações criminosas.
Bolsonaro aplica na política de armas a mesma lógica que aplica na gestão da Saúde: apostar no que acredita e no que agrada suas bases eleitorais independentemente dos resultados.
Existe um consenso internacional de que a diminuição do número de armas nas mãos da população tem influência direta no número de vidas poupadas, e no Brasil essa tendência se confirma.
A flexibilização da lei de armas do governo Bolsonaro fragiliza ferramentas que funcionam e estão sendo aperfeiçoadas há 25 anos: o “Sistema Nacional de Armas” (SINARM) e o”Sistema de Gerenciamento Militar de Armas” (SIGMA).
O governo federal, ao turbinar o mercado legal de armas e de segurança privada, impactará o mercado ilegal:
O Primeiro Comando da Capital e a flexibilização da lei de armas
As grandes organizações de tráfico internacional de armas, interessadas em investir nesse mercado, ampliarão as parcerias já existentes com o Primeiro Comando da Capital, que domina uma sofisticada estrutura de distribuição, com rotas estabelecidas com coparticipação de agentes públicos.
Para a facção PCC 1533, o custo operacional para o contrabando internacional de armas ainda é alto, precisando manter agentes nos órgãos policiais e de fiscalização para garantir o fluxo com menor índice de perdas.
Diversas rotas trazem as armas oriundas de diversos países fronteiriços, principalmente do Paraguai, ao sul, e da Venezuela, ao norte, mas também dos Estados Unidos, tanto pelos portos e aeroportos quanto pela Bolívia.
Além do apoio dos agentes públicos, as rotas geridas pelo Primeiro Comando da Capital incluem transportadoras, aviões e helicópteros próprios ou terceirizados, assim como uma malha de contatos em empresas de transportes ferroviários, aeroportuários, marítimos e fluviais e em aduanas e entrepostos.
Essa pesada estrutura não supre totalmente uma organização criminosa de estrutura gramínea, como a facção PCC 1533, e seus integrantes individualmente procuram soluções para seu próprio abastecimento:
militares e policiais desviam dos paióis;
empresas de segurança privada (de fachada ou por furto e roubo nas armarias);
contrabando, tanto o de poucas unidades em larga escala quanto em lotes maiores mas de forma independente;
furto e roubo de particulares em residência e comércio — em menor escala após a Lei do Desarmamento, mas com a flexibilização retomará seu volume e importância.
Em um país sem controle sobre os políticos
Interesses políticos impedem que haja um controle sobre o fluxo de dinheiro: da mesma forma que a família Bolsonaro consegue comprar dezenas de imóveis com dinheiro vivo, dinheiro legal, é claro, e a facção paulista também o faz.
Regras que acompanhassem, com eficiência, o dinheiro impediriam que tanto um deputado brasileiro quanto o sobrinho de Pablo Escobar em Barueri tivessem o trabalho de ter que ventilar seu apartamento para não embolorar as notas.
A infraestrutura de distribuição do Primeiro Comando da Capital se soma aos interesses políticos em um menor controle na circulação de armas e dinheiro vivo (agora com notas de 200 Reais) e a criação de entraves para o funcionamento dos mecanismos federais de controle de atividades financeiras.
O garoto de Sorocaba pegou a arma do mocó em um momento em que não se encontram armas com facilidade para substituir, se bem que o preço no mercado ilegal é mais baixo do que no legal.
A mão invisível de Adam Smith sumiu com as armas das ruas, mas seu valor de venda não subiu, pois o risco de tê-las e as altas penas impostas para quem for pego com elas desestimularam a busca pelo produto, confirmando a eficácia da teoria smithiana de mercado.
No imaginário popular, os integrantes do PCC estão montados em armas, mas não é bem assim: elas estão pulverizadas ou sob o controle dos responsáveis pelos paióis — certa vez conheci um deles, mas foi outra história.
Há muito não vou para Sorocaba, menos ainda para o Jardim Marli. Devo a André o recordar de boas lembranças — juro que enquanto escrevo, sinto a brisa, o cheiro e paz daquela quebrada.
O crime organizado na Tríplice Fronteira: governos e Primeiro Comando da Capital tomando pau de uma secular amarra socioeconômica.
PCC: não há solução simples para problema complexo
O combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC) não deixará os Estados nacionais da Tríplice Fronteira (TF)entre Argentina, Brasil e Paraguai mais próximos de eliminar o crime organizado da região.
O ativista russo Artemiy Semenovskiy da CTS Command me questionou sobre uma possível ligação entre as lideranças da facção paulista PCC 1533 com os integrantes da facção carioca Comando Vermelho, na região da TF.
A resposta curta é: “faça o que eu mando, não faça o que eu faço”.
A resposta longa é:
Tudo começou com…
O assassinato, na região da Tríplice Fronteira, de Jorge Rafaat Toumani, em 2016 marcou o fim da parceria entre integrantes do Primeiro Comando da Capital e da facção Comando Vermelho (CV).
… que virou uma sangrenta guerra …
Inimigos de ambos os lados são caçados, capturados, torturados e mortos, tanto no Brasil quanto no Paraguai, na Bolívia e até na Argentina — somando milhares de mortos.
… mas enquanto os moleques morrem …
O tempo passou e a guerra esfriou: novas fronteiras foram consolidadas, com escaramuças ocorrendo apenas nas regiões ainda em disputa, no entanto, investigações policiais provaram que integrantes da cúpula do Primeiro Comando da Capital agora negociam armas e drogas com o arqui-rival Comando Vermelho.
… afinal, o buraco é mais embaixo!
Engana-se quem acredita que existe uma resposta simples para uma questão complexa:
O assassinato de Toumani deveria ter eliminado os fornecedores independentes de drogas e armas no Paraguai, sufocando o Comando Vermelho no Rio de Janeiro, mas deu chabu, porque o Primeiro Comando da Capital não levou em conta a astúcia de Adam Smith e a história da formação sócio econômica daquela região.
Por outro lado, a logística do crime desenvolvido pela facção é invejável, como se tornou público com a Operação Palak da polícia argentina:
As armas chegavam desmontadas e em partes dos Estados Unidos a Buenos Aires, Santiago del Estero, Córdoba, Rio Negro e Santa Fe, já a munição ia da Alemanha para a Espanha e de lá para a Holanda, onde embarcavam para a Argentina. No país, uma rede comandada por um morador de Martínez montou o arsenal de guerra e, junto com as armas vendidas pelos donos de uma antiga fábrica em Córdoba, os enviou à cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, para finalmente entrar no Brasil e alimentar o Primeiro Comando da Capital. laseptma.info
O PCC, a formação sócio econômica da TF e a mão invisível do mercado
Há mais de um século a região desenvolve sua vocação de polo de livre circulação de pessoas, serviços e mercadorias, paulatinamente agregando: povos, conhecimento, infraestrutura em uma emaranhada rede internacional de relacionamentos e contatos.
Uma secular, complexa, arraigada e maleável estrutura socioeconômica não se dissolveria em poucas décadas por uma ação orquestrada entre Estados constituídos, e tampouco pela morte de Toumani.
Nas duas últimas décadas, Argentina, Brasil e Paraguai desenvolveram ferramentas jurídicas, institucionais e tecnológicas com o intuito de coibir a atuação das organizações criminosas na região da Tríplice Fronteira.
O assassinato de Toumani, ao contrário do que imaginou o Primeiro Comando da Capital, não garantiu sua hegemonia na fronteira, dando lugar a outros fornecedores independentes que trataram de absorver a demanda das facções inimigas.
Os recentes conflitos entre os PCCs da região e os traficantes independentes de Fahd Jamil; e a análise das contas de Maria Alciris Cabral, esposa de Minotauro, e dos traficantes Pavão e Galã comprovam a participação dos próprios líderes PCCs nessa cadeia de fornecimento — a mão invisível do mercado não abandona ninguém.
Do desenvolvimento estratégico para o retrato tirado
A segurança da fronteira brasileira é garantida pela Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (ENAFRON), pelo Sistema Integrado de Monitoramento das Fronteiras (SISFRON) e pela Operação Ágata.
Esses programas elaborados e implementados nas gestões Lula e Dilma visavam respaldar com equipamentos, pessoal e informação o combate ao crime organizado, mas tornaram-se uma ferramenta de marketing.
Apesar do empenho dos profissionais participantes do planejamento das operações, o resultado foi um belo espetáculo para a mídia, com fotos dos militares nas estradas e helicópteros sobrevoando as matas e os rios e policiais rodoviários e militares fazendo operações — garantindo um show para o público televisivo!
No entanto, é inegável os avanços feitos nesse período no combate ao crime organizado, criando condições para as futuras administrações.
Michel Temer continuou o processo de integração e aperfeiçoou as ferramentas jurídicas para integrar as diversas esferas de combate ao crime organizado na TF, agora com a presença também da Bolívia.
Jair Bolsonaro foi até a fronteira do Paraguai e bateu um retrato ao lado do presidente Mario Benítez.
Se Bolsonaro deixou de aprofundar os mecanismos transnacionais que visavam quebrar as grandes barreiras culturais, jurídicas e econômicas que poderiam minar as bases das organizações criminosas, pelo menos teve milhares de compartilhamentos entre seus apoiadores de sua selfie com Benítez.
O PCC se beneficia com a política de Bolsonaro
O pesquisador polonês Paweł Trefler afirma que a causa do fracasso dos Estados nacionais no combate ao crime organizado na região é a descontinuidade nos esforços em criar mecanismos permanentes e profundos para a eficácia do combate ao crime organizado na região da Tríplice Fronteira:
Estudo sobre o Primeiro Comando da Capital coloca em dúvida soluções e análises consagradas na política e no mundo acadêmico.
A pretensão de Marcos: analisar a facção PCC, “especialmente sua transformação de um grupo defensor dos direitos humanos em um ator não-estatal violento e transnacional” — fala sério?
O Primeiro Comando da Capital“é um ator que representa um desafio para a construção de uma sociedade pacífica em toda a América do Sul”? — ele também afirma que sim!
Ele não só fez essas duas afirmações, mas muitas outras. Veja com seus próprios olhos:
Marcos, ao contrário de muitos, acerta em suas previsões sobre a futura consolidação da facção no exterior por não ignorar as origens da organização criminosa.
As autoridades esculacham, encarceram e matam os garotos nas cadeias e nas favelas, gerando ídolos e mártires e assim consolidando o discurso de irmandade contra o opressor.
Fortalecido, com sangue nos olhos e com o sentimento de pertencimento a uma família protetora, o PCC se preparou para enfrentar inimigos poderosos.
Enquanto combate os órgãos policiais de todas as esferas, encara guerras com outros atores do mundo do crime de norte a sul do país: da Rota do Solimões no Amazonas à Guerra do Paraguai, passando pela disputa pelo domínio dos portos ao longo dos 10.959 quilômetros de costa.
Estima-se que apenas a cannabis que circula no Cone Sul, se legalizada, geraria 10 bilhões de dólares anuais — daí o interesse dos grupos criminosos pelo domínio dessas rotas.
o Primeiro Comando da Capital distribui 60% da cannabis produzida em solo paraguaio em uma área estimada entre 7 e 20 mil hectares (1.340 municípios brasileiros tem uma área de até 20 ha.) que produzem entre 15 e 30 mil toneladas por ano, ocupando duas dezenas de milhares de trabalhadores rurais: da pequena agricultura familiar aos latifúndios com o que há de mais avançado no agronegócio.
Enquanto o Estado ignora as origens da organização criminosa e a hipocrisia de suas política de drogas, os facciosos se abrigam por traz das muralhas do sistema prisional, se restabelecendo após cada ataque das forças de segurança .
Ao longo de sua história, o PCC tem sido um terreno fértil para o crime, principalmente pelo alto índice de pobreza e violência cultural do Estado em favelas e áreas pobres. Sem justiça social, a justiça baseada no crime encontra espaço para avançar.
Marcos Alan Ferreira
O Primeiro Comando da Capital garante a segurança para os seus nos locais onde o Estado só se apresenta pela sola dos coturnos, chutando e pisando em seus filhos e irmãos.
O imaginário da garotada é então capturado pela narrativa do infrator que se opõe aos poderosos e protege os indefesos ao mesmo tempo que enriquece.
Soldados preparados para usar a violência e a força armada, mas cuja principal arma é o espírito de família e o medo e o respeito que o nome Primeiro Comando da Capital impõe.
Robert Mandel, por sua vez, afirma que ficou ainda mais difícil construir uma sociedade brasileira mais harmoniosa com um ator tão violento e organizado como a facção PCC.
Robert confunde o sintoma com a doença — o Primeiro Comando chama a atenção para as desigualdades e para a criminalidade, assim como a febre alerta para uma gripe…
… já “Seu Jair” ignora a doença, colocando o enfermo em uma banheira com gelo para diminuir a febre.
Robert erra no atacado, mas acerta no varejo: seria mais cômodo assistirmos na tv, entre um assunto ou outro, sobre as condições desumanas no sistema carcerário e nas periferias em vez de sermos obrigados a encarar de frente essa situação.
“Seu Jair” erra no atacado e no varejo: não será com ações simples aprendidas em filmes americanos e no “Cidade Alerta” que se enfraquecerá a facção.
Marcos acerta no atacado e também no varejo:
“Este cenário desafiador não pode ser tratado com respostas simples. A presença e letalidade do PCC atingiu tal gravidade que uma abordagem de lei e ordem precisa ser combinada com uma abordagem abrangente. Um ponto de partida seria o controle do Estado sobre as prisões, aliado à presença em favelas e áreas pobres por meio de políticas sociais e de participação pública que tornam o crime uma opção menos atrativa para os jovens. Embora esse plano possa ser visto como utópico, a realidade é que uma abordagem de lei e ordem não resolverá o problema, nem apenas expandir as prisões sem uma estratégia clara para transformar o comportamento dos detidos. Problemas complexos exigem respostas abrangentes, especialmente para enfrentar um ‘ator não-estatal violento e transnacional’ poderoso que opera além das fronteiras nacionais.”
Pedro Rodrigues da Silva, o Pedrinho Matador, conhece o sistema prisional de São Paulo como poucos. Ele ficou sem ver a rua de 1973 até 2007 e de 2011 até 2018 — viveu mais de 40 atrás das grades e por lá, ele conta que viu mais de 200 presos serem mortos enquanto esteve por lá, sendo que mais de 100 foram ele mesmo que matou.
Viveu no cárcere no tempo do Regime Militar, da redemocratização e dos governos com leve viés progressista, mas mudança mesmo, houve quando a facção paulista despontou como hegemônica, acabando com as diversas gangs e grupos dentro das cadeias e presídios.
Sobre o Primeiro Comando da Capital ele afirmou durante uma entrevista:
“Fui [convidado a entrar no PCC], mas não entrei. Ali é o seguinte: depois que surgiu o partido, você vê que a cadeia mudou. Não morre ninguém porque o partido não deixa. É paz. Paz para a Justiça ver. Se começa uma briga, eles seguram. Eles também ajudam quem sai, arrumam trabalho.”
O grupo criminoso Primeiro Comando da Capital, assim como as bruxas e o comunismo, é utilizado para que grupos políticos, que estão no poder ou desejam chegar a ele, criem um ambiente de terror com alguma finalidade específica.
Aparentemente é o que voltou a acontecer agora na Bolívia, onde parte do governo do presidente Luis Arce deseja facilitar a ação no país da Drug Control Administration (DEA), apesar de há muito a facção PCC 1533 ter caído no esquecimento pela população boliviana.
Os números do Google Trends não deixam dúvidas de que o fantasma está sendo alimentado artificialmente para então poder ser combatido.
Facção PCC: os dois lados da questão
Quem se opõe a essa narrativa para justificar uma intervenção americana no país, que no geral não acaba bem, é o vice-ministro de Substâncias Controladas, Jaime Mamani Espíndola, que afirma que se fosse significativa a presença da facção paulista no país as autoridades não poderiam circular livremente como o fazem.
Quem apoia e alimenta essa narrativa e pede a presença do DEA, que no geral acaba trazendo dólares para o país e holofotes para políticos e agentes do Estado através de políticas de “intercâmbio”, é a oposição de direita que há poucos anos tentou tomar o país a força e a Comunidad Ciudadana (CC), uma coligação política de centro liderada pelo ex-presidente Carlos Mesa.
Enquanto cresciam as igrejas neopentencostais, nos anos 1980, os morros cariocas e as periferias paulistanas passaram a ser palco de uma nova tensão provocada pela chegada do tráfico de drogas como grande negócio transterritorial.
Naquela década, o Brasil era uma rota fundamental para o trânsito de cocaína dos Andes para a Europa e, além disso, um mercado promissor para o consumo de cocaína, solventes e maconha.
Hoje o Brasil se tornou o segundo maior mercado do mundo depois dos Estados Unidos, com dois milhões e oitocentos mil consumidores.
Das prisões abarrotadas surgiram os grupos de autodefesa de presos que logo controlariam o governo das próprias prisões e de territórios em favelas e periferias.
Do seminal Comando Vermelho, formado no presídio da Ilha Grande em 1979, ao Primeiro Comando da Capital, nascido em 1992 no presídio de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, a combinação entre proibição das drogas, repressão policial e a continuação constante da criminalização das populações pobres e negras fez o narcotráfico florescer e se desdobrar em outros rentáveis ilegalismos aproximando agentes do Estado de soldados do tráfico.
A produção desse novo crime, o narcotráfico, tem uma história que remonta às primeiras ondas de proibição das drogas no início do século XX, mas tomou forma de “ameaça” à “ordem” nos discursos governamentais e na grande imprensa a partir dos anos 1980.
Caça aos negros e pobres: guerra às drogas
Após trinta anos da versão brasileira da “guerra às drogas”, seguindo dados conservadores fornecidos pelo Ministério da Justiça, cerca de 20% dos homens presos e 51% das mulheres, se encontram confinados(as) por condenações ou processos em curso relacionados ao tráfico de drogas. Deles, cerca de 60% são “pretos” ou “pardos”, constituindo a categoria “negro”, segundo o IBGE. Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen)/Infopen de 2017, 63,6% da população carcerária brasileira é composta por pretos/pardos, enquanto representam apenas 55,4% do total. Com a terceira maior população prisional do mundo (com 748.009 pessoas presas segundo dados do Depen de abril de 2020), o Brasil prende majoritariamente pobres, jovens, negros e negras e de baixa escolaridade.
A atual política de combate às drogas que nós temos não só é ineficiente como amplia essa situação que estamos vivendo. Quando se pega um moleque com uma trouxa de maconha, uma pedra de crack, sem armas, sem ter cometido crimes violentos, que não é reincidente, e o joga dentro de unidade prisional controlada pelo PCC, Comando Vermelho, simplesmente se cancelando a possibilidade de se resgatar esses jovens. Ao mesmo tempo, dentro do sistema prisional, cerca de 80% não tem atividades educacionais ou laborais. Então não se prepara esse jovem para a ressocialização, para que ele volte à vida social e para o mercado. Essa é uma política que não resolve.
Pedro Rodrigues da Silva, o Pedrinho Matador, conhece o sistema prisional de São Paulo como poucos. Ele ficou sem ver a rua de 1973 até 2007 e de 2011 até 2018 — viveu mais de 40 atrás das grades e por lá, ele conta que viu mais de 200 presos serem mortos enquanto esteve por lá, sendo que mais de 100 foram ele mesmo que matou.
Viveu no cárcere no tempo do Regime Militar, da redemocratização e dos governos com leve viés progressista, mas mudança mesmo, houve quando a facção paulista despontou como hegemônica, acabando com as diversas gangs e grupos dentro das cadeias e presídios.
Sobre o Primeiro Comando da Capital ele afirmou durante uma entrevista:
“Fui [convidado a entrar no PCC], mas não entrei. Ali é o seguinte: depois que surgiu o partido, você vê que a cadeia mudou. Não morre ninguém porque o partido não deixa. É paz. Paz para a Justiça ver. Se começa uma briga, eles seguram. Eles também ajudam quem sai, arrumam trabalho.”
Pesquisador afirma que as organizações criminosas no momento desenvolvem um trabalho social, mantêm seus negócios fluindo e sairão altamente capitalizadas dessa pandemia.
A facção PCC financiando a reconstrução pós-pandemia
O mundo pós-pandêmico poderá ter sua economia controlada por esses grupos, caso os Estados não recapitalizem as empresas, deixando-as à mercê das regras de mercado, em um momento em que os grupos criminosos detêm o capital.
Enquanto as populações mais carentes são assistidas pelos criminosos, as rotas do tráfico de drogas e armas continuam ativas, e milhares de operações ilícitas ou fraudulentas ocorrem em decorrência da própria pandemia.
“Precisamos ajudar essas pessoas pobres!” — o homem que diz essas palavras não é um voluntário da Cruz Vermelha, mas um membro do cartel de Sinaloa , uma das máfias mais poderosas do mundo. Do noroeste do México, ele nos explica por telefone, que o cartel está substituindo as autoridades, distribuindo máscaras e sacos de comida a milhares de pessoas deixadas sem recursos, no meio de uma economia parada.
As mesmas cenas no Brasil, onde o Primeiro Comando da Capital (CCP), principal organização criminosa do país, compra cestas embaladas em supermercados e as distribui nas centenas de favelas que controla.
No Japão, Yamaguchi-gumi é o estado,Yakuza , tentou oferecer sua ajuda para desinfetar um navio que transportava passageiros de cruzeiros carregando o coronavírus.
O Primeiro Comando da Capital está financiando a importação de proteção pessoal e equipamentos médicos, que estão sendo disponibilizados no mercado legal e paralelo, além de fraudar governos e negócios com empresas fantasmas.
O lucro será posteriormente aplicado, e você talvez venha a trabalhar, mesmo sem saber, em uma empresa financiada pela facção PCC.
O Primeiro Comando da Capital e outras organizações criminosas se fortaleceram durante os fechamentos das cidades por conta do Coronavírus.
Douglas Farah, presidente da consultoria americana IBI Consultant, afirma que o crime organizado sairá fortalecido e capitalizado dessa crise, e terá melhores condições de adquirir negócios legais e ampliar suas atividades ilícitas se aproveitando da desorganização das forças políticas e de repressão ao crime…
As biqueiras seguiram abastecidas, e os clientes não foram impedidos de comparecer. Graças ao presidente Bolsonaro não houve lockdown e o fechamento do comércio foi frouxo, parcial e por pouco tempo.
Governadores avisaram que fariam barreiras nas estradas, mas o governo federal bloqueou a iniciativa, impedindo a ação nas estradas federais, e contando com apoio tácito dos policiais estaduais e do movimento dos caminhoneiros, bases do bolsonarismo, que inviabilizaram a iniciativa nas estradas estaduais.
Enquanto as atividades legais e os indivíduos tiveram interrupção em seus empreendimentos, as organizações criminosas mantiveram seus negócios, as organizações criminosas mantiveram-se ativas.
Juntou-se a essa facilidade logística que não ocorreu em outros países que implantaram um rígido lookdown controle nas estradas, à natural experiência em burlar as restrições e negociar: prazos e formas de recebimento.
O Promotor de Justiça Lincoln Gakiya confirmou que as exportações gerenciadas pela facção Primeiro Comando da Capital a partir do porto de Santos para a Europa e África não tiveram significativa interrupção por problemas logísticos…
… mas como ficaram os negócios em outros locais onde o presidente da República não deu uma mãozinha para os irmãos?
Fechamento? Fala sério! O comércio internacional de drogas em tempos de pandemia.
Quando uma onda de infecções por coronavírus atingiu a Itália no final de março, Rocco Molè, um membro da organização criminosa ‘Ndrangheta, enfrentou um dilema.
Ele tinha um estoque 537 kg de cocaína, contrabandeados recentemente para o porto de Gioia Tauro, no sul da Itália, que seu clã controla. Mas, devido aos bloqueios trazidos para controlar o vírus, ele só podia mover pequenas quantidades da droga de cada vez para o norte, em direção aos usuários europeus de cocaína.
Então ele decidiu enterrar o esconderijo em um bosque de limão.
O incidente relatado em uma declaração da polícia italiana mostra a situação enfrentada pelos contrabandistas de cocaína, já que a pandemia global aumentou as fiscalizações nas rotas de transporte, forçando a interrupção das redes usuais de contrabando e distribuição, mas também demonstra a flexibilidade do comércio ilegal, que manteve os negócios em expansão, enquanto muitas atividades legais do mundo estavam impedidas de trabalhar.
No caso de Molè, a aposta acabou sendo um erro caro, de acordo com o comunicado de 28 de março. A polícia italiana, realizando verificações de bloqueio, viu quando um motorista desviou da barreira e o seguiu até o bosque onde ele havia enterrado os tijolos embrulhados em plástico. Ele agora está preso, acusado de tráfico de drogas.
Mas os repórteres da OCCRP descobriram que a indústria de cocaína do mundo – que produz cerca de 2.000 toneladas por ano e produz dezenas de bilhões de dólares — se adaptou melhor do que muitas outras empresas legítimas. A indústria se beneficiou dos enormes estoques de drogas e insumos que havia antes da pandemia e de sua ampla variedade de métodos de contrabando. Os preços de rua em toda a Europa aumentaram em até 30%, mas não está claro quanto disso se deve a problemas de distribuição e quanto às quadrilhas de traficantes que tiram proveito dos clientes locais.
O que está claro é que a cocaína continuou a fluir da América do Sul para a Europa e a América do Norte. As rotas de tráfico fechadas foram substituídas por novas e as vendas nas ruas e eventos foram substituídas por entregas de porta em porta.
Na Colômbia, o maior produtor mundial de cocaína, bloqueios e esforços de erradicação do governo reduziram parte da produção, enquanto as restrições de viagens fecharam algumas rotas de exportação significativas, como lanchas. Nos mercados de destino na Europa e nos Estados Unidos, as autoridades ainda estão apreendendo grandes quantidades com frequência notável – um sinal de que os traficantes de drogas ainda estão fazendo um comércio vigoroso.
Por mais de um mês, os repórteres da OCCRP na Europa e na América Latina acompanharam anúncios de apreensões e conversaram com policiais, analistas e fontes do comércio de cocaína.
Eles descobriram que o um setor se mostrou ágil em encontrar maneiras de contornar as medidas globais sem precedentes de bloqueio e quarentena. O comércio de cocaína está prosperando em um mundo onde até mesmo os pilares do petróleo estão enfrentando grandes interrupções.
Como muitos países começam a reabrir parcialmente suas economias, os traficantes estão em posição de se tornarem mais poderosos do que nunca. Com as economias em perigo e muitas empresas enfrentando a ruína, os narcotraficantes estão capitalizados e serão capazes de comprar negócios legais.
Um helicóptero da polícia colombiana patrulha uma região produtora de coca no departamento de Nariño, no sudoeste do país. Crédito: Juan Manuel Barrero Bueno, c / o OCCRP
Os esconderijos estão em toda parte
A pandemia afetou inicialmente a produção nos países da América do Sul, onde as folhas de coca são cultivadas e transformadas em cocaína. Mas essa queda na produção nunca reduziu o comércio, porque a maioria das quadrilhas de traficantes tem grandes quantidades de drogas armazenadas em mãos.
No Peru, onde aproximadamente 20% da cocaína é produzida no mundo, os bloqueios de saúde pública impostos pelas comunidades locais paralisaram o cultivo e a produção de coca, de acordo com Pedro Yaranga, analista de segurança peruano.
“O que em quase quatro anos a agência de controle de drogas não conseguiu, o coronavírus fez em poucas semanas”, disse ele.
Na Bolívia, onde se produz cerca de um décimo da coca do mundo, o quadro é invertido, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Nesse país, “o COVID-19 está limitando a capacidade das autoridades estatais de controlar o cultivo de coca, o que pode levar a um aumento na produção de coca”, disse o UNODC em um relatório de 7 de maio.
Na Colômbia, onde 70% da cocaína do mundo é produzida, o quadro é mais confuso. A polícia antinarcóticos erradicou mais de 1.969 hectares de plantações de coca nas três semanas após os bloqueios entrarem em vigor em todo o país em 25 de março, informou a polícia antidrogas do país ao OCCRP.
“A percepção da população é que [o governo] está aproveitando a quarentena e as pessoas presas em suas casas para erradicar a coca”, disse Jorge Elías Ricardo Rada, chefe de um sindicato que representa os interesses dos pequenos agricultores na região de Córdoba. “Eles tiram o pouco que as pessoas têm.”
Em Catatumbo, uma região próxima à fronteira com a Venezuela, “os negócios estão praticamente paralisados”, disse Giovanny Mejía Cantor, jornalista independente sediada em Ocaña, a principal cidade da região. Normalmente, a área produz coca suficiente em um ano para produzir 84 toneladas de cocaína pura, mas isso diminuiu para um pouco.
“As comunidades entraram na estrada e criaram bloqueios para impedir que as pessoas entrassem em sua vila por medo de coronavírus”, disse Mejía, acrescentando que isso impediu o movimento de matérias-primas necessárias na produção, incluindo folhas de coca e produtos químicos.
Um fazendeiro de coca recolhe folhas de coca em Guaviare, Colômbia. Crédito: Juan Manuel Barrero Bueno, c / o OCCRP
O maior cartel de exportação do país, no entanto, não parece ter sofrido. Membros do clã do Golfo da Colômbia disseram que puderam recorrer aos estoques guardados antes da pandemia, bem como folhas de coca de fazendas menores que ainda estão funcionando e não exigem uma grande força de trabalho.
O reduto do Clã do Golfo fica em Urabá, no noroeste da Colômbia, uma região estratégica com plantações de coca, laboratórios e portos de exportação. O grupo normalmente tem cerca de 40 a 45 toneladas de cocaína processada armazenada naquela área, cerca de dois meses de exportações, de acordo com um membro do Clã do Golfo, que pediu para ser identificado como “Raúl”. Ele se recusou a ser identificado porque isso o colocaria em perigo físico e legal.
“Sempre houve um estoque, é uma cadeia muito organizada. É a maneira de controlar tudo, especialmente o preço. Os estoques estão em praias como Tarena [perto da fronteira com o Panamá], plantações de banana, na selva. Os esconderijos estão por toda parte”, disse Raúl.
Um relatório de inteligência da Marinha colombiana de abril obtido pelo OCCRP também concluiu que os cartéis provavelmente estavam exportando cocaína armazenada antes da crise do COVID-19.
A marinha colombiana também descobriu que os produtores de cocaína se adaptaram facilmente aos desafios na movimentação de seus produtos. Os Estados Unidos, no norte, são o maior cliente individual.
Tradicionalmente, os contrabandistas usavam lanchas pequenas e muito rápidas, bem como embarcações de pesca e submarinos, para percorrer sua rota norte. Os bloqueios tornaram esses métodos mais difíceis de usar, principalmente por razões logísticas. Então, em vez disso, os contrabandistas estão voltando para rotas mais antigas e lentas, que geralmente são divididas em partes.
Com base em várias fontes no norte da Colômbia, incluindo Raúl e um plantador de coca, a OCCRP conseguiu traçar aproximadamente seis rotas novas ou revividas que se acredita serem atualmente usadas pelos traficantes. Isso inclui rotas para o Panamá através de áreas indígenas.
Membros do povo indígena Kuna estão trazendo drogas por terra, fazendo pequenos barcos subirem as águas costeiras. No Darien Gap, uma selva espessa e montanhosa na fronteira da Colômbia e Panamá, a cocaína está sendo transportada por caravanas de até duas dúzias de carregadores de mochila.
Credit: Elena Mitrevska, c/o OCCRP
As exportações para o outro maior mercado de cocaína do mundo, a Europa, sofreram ainda menos interrupções. Diferentemente das exportações para os Estados Unidos, a cocaína com destino à Europa normalmente é transportada em cargas aéreas e marítimas legais, especialmente junto a produtos frescos de movimento rápido, como flores e frutas. Este último, como alimento, continuou a se mover desimpedido durante a pandemia, ajudando a alimentar o hábito de cocaína da Europa, com 9,1 bilhões de euros por ano.
A indústria de banana da Colômbia, por exemplo, foi isenta de medidas locais de bloqueio, permitindo que a cocaína continue se movendo pela cadeia de suprimentos da colheita.
“[Qualquer pessoa] nas autoridades ou na segurança que se intromete nessa rota cai”, disse Rául, membro do Clã do Golfo, acrescentando que as pessoas que são pagas para facilitar o contrabando de cocaína têm um incentivo para manter as drogas fluindo.
“Todo mundo come”, disse ele.
A terceira principal rota de exportação da América do Sul – na qual cocaína da Colômbia, Peru e Bolívia é transportada por terra e depois enviada do outro lado do Atlântico a partir do porto brasileiro de Santos – ainda está em operação, disse Lincoln Gakyia, promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo encarregado de combater o crime organizado.
No México, os cartéis que controlam o tráfico para o norte nos Estados Unidos floresceram sob condições de bloqueio. As apreensões na fronteira dos EUA aumentaram mais de 12% nas duas semanas após a imposição das restrições de viagem, indicando tráfego intenso contínuo, segundo dados da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA.
Os traficantes de drogas “abandonaram o método tradicional de enviar remessas frequentes, porém pequenas, através da fronteira sudoeste, para remessas menos freqüentes, mas maiores”, disse a DEA em resposta às perguntas dos repórteres, acrescentando que não está claro se esse foi o resultado do COVID-19 ou outros fatores.
Os cartéis mexicanos usaram a crise como uma oportunidade de relações públicas. As pessoas associadas aos cartéis, incluindo a filha do chefe do cartel de Sinaloa, Joaquín “Guzmán, conhecido como El Chapo”, distribuíram publicamente alimentos e outros itens essenciais para os pobres.
Enquanto isso, a violência contra as drogas do país continua inabalável, com uma média de 80 vidas por dia.
“Eles podem estar dando compras para as amigas da mãe de Chapo, mas isso não significa que se importem com o bem do país”, disse Guillermo Valdés, ex-chefe da agência nacional de inteligência do México.
A Marinha da Colômbia mostra o resultado de uma apreensão de cocaína no Oceano Pacífico em 17 de abril de 2020. Crédito: Marinha da Colômbia, c / o OCCRP
Recordes de apreensões de drogas na Europa
Na Europa, a pandemia provocou um aumento nas grandes apreensões nos portos e acelerou uma tendência que está tornando a Espanha um ponto de entrada cada vez mais importante para o suprimento de cocaína no continente. Apesar de um grande número de apreensões, os traficantes de drogas na Europa não estão vendo grandes interrupções no fornecimento de cocaína.
Em março e abril, a Espanha apreendeu mais de 14 toneladas de cocaína em remessas de entrada – um número seis vezes maior que o mesmo período do ano anterior, disse Manuel Montesinos, vice-diretor de vigilância aduaneira da Agência Espanhola de Impostos.
“Estamos muito impressionados com o ritmo frenético”, disse Montesinos. “Quase todos os dias recebemos alertas de detecções de operações suspeitas.”
Em um exemplo, as autoridades espanholas apreenderam quatro toneladas de cocaína de um navio a cerca de 555 km da costa. O navio com bandeira do Togo era um navio de suprimento offshore, não projetado para uma viagem em alto mar. No entanto, o navio havia sido ancorado no Panamá pela última vez e navegou através do Atlântico, em direção à costa galega da Espanha, com 15 pessoas a bordo.
Pelo menos sete outras grandes remessas de mais de 100 kg foram apreendidas na Espanha, principalmente em frete de entrada. Quatro deles pesavam mais de uma tonelada.
Um homem adiciona cal às folhas de coca, juntamente com outros produtos químicos, para fazer pasta de coca em Guaviare, Colômbia. Crédito: Juan Manuel Barrero Bueno, c / o OCCRP
Ramón Santolaria, chefe de narcóticos da polícia nacional da Espanha na Catalunha, disse que os traficantes de cocaína podem ter assumido erroneamente que a pandemia reduziria o monitoramento nos portos.
Os cartéis “precisam continuar exportando”, afirmou Santolaria. “Eles são como uma empresa. Eles não podem armazenar tudo em seus países, pois seria muito arriscado.”
Enquanto os portos da Espanha tiveram um boom de cocaína, a Itália ficou em silêncio como ponto de chegada, apesar de abrigar grupos da máfia que dominam o comércio de cocaína na Europa.
As apreensões caíram 80% nos meses de março e abril em comparação com o mesmo período do ano passado, de acordo com Riccardo Sciuto, diretor da Direção Central dos Serviços Antidroga (DCSA), a agência antidrogas da Itália.
A cocaína destinada ao mercado local agora está chegando por estrada do resto da Europa. “A Itália não recebeu muito via portos ou aeroportos e é porque durante o bloqueio os controlamos muito”, disse Marco Sorrentino, chefe do departamento anti-máfia da polícia financeira da Itália, a Guardia di Finanza.
Grupos criminosos italianos transferiram suas operações para a Espanha, onde possuem grandes “colônias”, segundo Sorrentino.
“As máfias italianas e seus parceiros enviaram cocaína principalmente para Algeciras ou Barcelona, e de lá a transportaram sobre rodas para o resto da Europa e para a Itália”, disse ele. “Como cobertura, eles usavam caminhões cheios de frutas frescas ou também farinha de soja”, que se assemelha a cocaína.
Nos grandes portos do norte da Europa de Roterdã, na Holanda, e Antuérpia, na Bélgica, a cocaína continua chegando como antes, escondida em remessas de bens de consumo legais, segundo as autoridades locais.
“Não vamos ter ilusões, os criminosos continuarão sem piedade”, disse Fred Westerbeke, chefe de polícia de Roterdã.
“Vemos ainda mais atividade no porto. Nas últimas semanas, prendemos muitas pessoas que esvaziam os contêineres onde as drogas estão ocultas”, disse ele, acrescentando que houve mais de 40 prisões desde que os bloqueios entraram em vigor.
Talvez como resposta ao aumento das apreensões, o preço de venda da cocaína tenha aumentado de 20 a 30% durante o período de bloqueio, de meados de fevereiro até o final de abril, em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo o Sciuto da DCSA. Seis meses atrás, grupos criminosos na Europa pagavam de 25.000 a 27.000 euros por um quilo de cocaína; agora eles desembolsam entre 35 mil e 37 mil euros, disse ele, acrescentando que a polícia espanhola notou a mesma tendência.
Credit: Elena Mitrevska, c/o OCCRP
Disque drogas em tempos de pandemia e a Dark Web
Nas ruas, os bloqueios causaram estragos nas vendas de cocaína – mas também não conseguiram parar o comércio. Mas, em alguns casos, pelo menos, as adaptações dos traficantes podem realmente colocá-los em uma posição mais lucrativa do que antes, pois os usuários de cocaína estão desesperados e confinados em casa.
“Embora não faltem produtos, aumentaram um pouco os preços e estão reduzindo mais”, disse Sorrentino, da Guardia di Finanza, da Itália, referindo-se ao processo de diluição da cocaína com substâncias mais baratas.
Os traficantes de cocaína e usuários regulares em Roma disseram que demorou várias semanas para que novos métodos de distribuição entrassem em vigor depois que medidas rigorosas de bloqueio tornaram o comércio regular muito arriscado.
A solução? Entregá-lo aos clientes sob a forma de pedidos de alimentos ou transportados por trabalhadores essenciais, carregando documentos que lhes dão permissão para circular livremente. Os revendedores também mantiveram posições em filas socialmente distanciadas fora dos supermercados – um dos únicos lugares permitidos para se reunir em público sob as rígidas regras de bloqueio da Itália, que começaram a diminuir no início de maio.
As restrições de bloqueio também levaram a um aumento no comércio pela dark web, parte da internet que não é visível aos mecanismos de pesquisa e deve ser acessada usando um software especial que oculta as identidades dos usuários.
“Vimos um aumento da dark web sendo usado também na Itália e existe a regra da ‘coronasale’ – descontos para a pandemia do COVID-19”, explicou Sorrentino, acrescentando que as grandes quantidades oferecidas indicaram que os descontos eram destinado a revendedores e não a usuários individuais.
As mãos de um apanhador de folhas de coca em Guaviare, Colômbia. Crédito: Juan Manuel Barrero Bueno, c / o OCCRP
As propagandas de “cocaína colombiana” aumentaram junto com o número de vendedores nos dois mercados, onde os traficantes oferecem um grama de 80% de cocaína pura por US $ 80. O preço de um grama é o mesmo, mas a pureza tende a ser muito menor.
Muitos clientes pareciam satisfeitos: “Excelente serviço em tempos difíceis”, escreveu um deles.
Os principais mercados da Dark Web registraram um aumento nas vendas de aproximadamente 30% desde que as medidas de bloqueio começaram a entrar em vigor em todo o mundo, mas não é possível identificar a origem dos vendedores, de acordo com Giovanni Reccia, chefe da Unidade Especial de Prevenção de Crimes Online da Guardia di Finanza da Itália. A maioria deles declara estar sediada na Holanda, Alemanha e Reino Unido.
Assim como antes da crise, a cocaína representava cerca de 15% de todas as vendas de drogas da Dark Web, atrás da maconha, que possui um quarto do mercado on-line de drogas ilegais.
O resultado do comércio contínuo de cocaína, segundo Sorrentino, da Guardia Finanza, é que os grupos do crime organizado provavelmente sairão da crise com muito dinheiro em uma economia onde muitos outros estão lutando para sobreviver.
“Cidadãos particulares que precisam e não têm acesso a um empréstimo bancário serão vítimas de agiotas”, disse ele. “Mas o que mais nos preocupa é que as empresas lícitas possam estar em necessidade e ser abordadas por organizações da máfia que se propõem a se tornar acionistas minoritários”.
“E quando isso acontece, eles realmente assumem a empresa inteira”, alertou Sorrentino.
O artigo original da OCCRP foi escrito por Cecilia Anesi, Giulio Rubino, Nathan Jaccard, Antonio Baquero, Lilia Saúl Rodríguez, Aubrey Belford; com reportagem adicional de Koen Voskuil, Raffaele Angius, Bibiana Ramirez, Juan Diego Restrepo E. e Luis Adorno. Esta história foi feita em colaboração com o jornal Algemeen Dagblad, na Holanda, e o VerdadAbierta.com, na Colômbia.