A facção PCC e a flexibilização da lei de armas

Organizações de tráfico internacional de armas e parcerias com o Primeiro Comando da Capital, que domina uma sofisticada estrutura de distribuição.

A casa ficava em uma rua de terra, em frente ao córrego, no Jardim Marli, em Sorocaba — o lugar me acalmava e me sentia muito bem ali.

artigo 31. Mão na cumbuca: É caracterizado quando rouba algo da organização, dinheiro, drogas, armas, etc… Trata de uma situação grave. Punição: exclusão e morte, depende da situação com análise da Sintonia.

Regimento Interno do PCC

Se houvesse mais armas nas ruas, ele colocaria outra no lugar, “tomaria um salve para aprender”, e seguiria sua vida — como vi isso algumas vezes.

Sinto saudades daquele lugar, da pequena ponte sobre o córrego, onde os garotos aguardavam de sinaleiros, e dos cavalos que pastavam sossegados no meio do capim gordura — talvez fosse vê-los o que me acalmava.

Dificilmente alguém me trás boas lembranças, mas ao ler o trabalho de André, revivi aquele dia e me senti de volta naquele lugar. Devo isso a ele.

Em um país sem controle sobre as armas

Houve um tempo onde as armas sobravam nas mãos de policiais, civis, e criminosos.

Viaturas policiais com armas frias, tanto para o uso ilícito dos próprios policiais como para entrouxar em algum desafeto.

Traficantes com armas frias, tanto para sua segurança pessoal e de seu negócio como ferramenta de convencimento nas cobranças.

Hoje, no entanto, é raro a polícia paulista andar com arma fria mocosada na viatura, assim como são raríssimas as abordagens que encontram indivíduos armados, principalmente em biqueiras, e são milhares de abordagens diárias.

As armas curtas foram controladas tanto pela aprovação do Estatuto do Desarmamento de 2003 durante o governo Lula quanto por ordem do Primeiro Comando da Capital (PCC).

O Estado retirou as armas das ruas para diminuir a taxa de homicídio, e o PCC para acabar com as guerras entre as biqueiras dentro das comunidades.

Morreram mais de 1 milhão de pessoas por armas de fogo desde 1980, a maioria jovens negros de periferia — é como se toda a população de Campinas fosse morta.

Assim como o governo, as lideranças da facção PCC 1533 perceberam que esse genocídio é ruim para a sociedade e para a economia, exceto para os fabricantes de armas e seus defensores.

PCC e Bolsonaro no lucrativo mercado de armas

Assim como um vírus, a organização criminosa Primeiro Comando da Capital evolui exponencialmente e já se prepara para atuar em um mercado de armas com menor custo e maior oferta e demanda.

André, citando Evan Ellis e Daniel Sansó-Rubert, explica essa mudança na dinâmica nos negócios de armas curtas ilícitas:

“o fenômeno do crime, como qualquer outro evento social, está intimamente relacionado com as realidades que o cercam e materializado de acordo com um contexto específico no espaço-tempo e com determinadas condições sociais, tecnológicas, políticas e humanas”, onde “grupos de crime organizado transformam e são transformados pelas infraestruturas das sociedades nas quais eles operam”.

Ao analisarmos o Brasil, concluímos que existe uma correlação na flexibilização da lei de armas e na corrupção crescente de agentes públicos, que aumenta a circulação de armas, diminui o preço delas no mercado ilegal, aumenta eventuais colaborações entre agentes públicos corruptos e organizações criminosas no tráfico de armas leves e cria uma janela de oportunidade para este crime crescer no país.

Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2020 nos países com maior influência da facção Primeiro Comando da Capital:

Índice de Capacidade de Combate à Corrupção na Tríplice Fronteira

Sei que não existe corrupção no governo, principalmente por parte de Bolsonaro e seus filhos, e que com certeza eles nada recebem do mercado internacional de armas, que movimenta anualmente 80 bilhões de dólares.

Se estivessem, seria o que se chama de “corrupção sistêmica”, aquela na qual o agente público de alto escalão cria situações que facilitam em larga escala a atuação das organizações criminosas.

Bolsonaro aplica na política de armas a mesma lógica que aplica na gestão da Saúde: apostar no que acredita e no que agrada suas bases eleitorais independentemente dos resultados.

Existe um consenso internacional de que a diminuição do número de armas nas mãos da população tem influência direta no número de vidas poupadas, e no Brasil essa tendência se confirma.

A flexibilização da lei de armas do governo Bolsonaro fragiliza ferramentas que funcionam e estão sendo aperfeiçoadas há 25 anos: o “Sistema Nacional de Armas” (SINARM) e o”Sistema de Gerenciamento Militar de Armas” (SIGMA).

O governo federal, ao turbinar o mercado legal de armas e de segurança privada, impactará o mercado ilegal:

Logo, a maior circulação de armas cria uma janela de oportunidade para criminosos adquirirem armas sob preços inferiores àqueles anteriores à flexibilização da lei.

O Primeiro Comando da Capital e a flexibilização da lei de armas

As grandes organizações de tráfico internacional de armas, interessadas em investir nesse mercado, ampliarão as parcerias já existentes com o Primeiro Comando da Capital, que domina uma sofisticada estrutura de distribuição, com rotas estabelecidas com coparticipação de agentes públicos.

Traficantes de armas buscam o lucro através da comercialização deste produto em países com poucas ou fracas leis e mecanismos limitados de controle de armas, onde a sua transferência requer uma rede de traficantes e agentes públicos corruptos em um espaço transnacional entre Estados soberanos. — André citando Jeremy Haken

Para a facção PCC 1533, o custo operacional para o contrabando internacional de armas ainda é alto, precisando manter agentes nos órgãos policiais e de fiscalização para garantir o fluxo com menor índice de perdas.

Diversas rotas trazem as armas oriundas de diversos países fronteiriços, principalmente do Paraguai, ao sul, e da Venezuela, ao norte, mas também dos Estados Unidos, tanto pelos portos e aeroportos quanto pela Bolívia.

Além do apoio dos agentes públicos, as rotas geridas pelo Primeiro Comando da Capital incluem transportadoras, aviões e helicópteros próprios ou terceirizados, assim como uma malha de contatos em empresas de transportes ferroviários, aeroportuários, marítimos e fluviais e em aduanas e entrepostos.

Essa pesada estrutura não supre totalmente uma organização criminosa de estrutura gramínea, como a facção PCC 1533, e seus integrantes individualmente procuram soluções para seu próprio abastecimento:

  • militares e policiais desviam dos paióis;
  • empresas de segurança privada (de fachada ou por furto e roubo nas armarias);
  • contrabando, tanto o de poucas unidades em larga escala quanto em lotes maiores mas de forma independente;
  • furto e roubo de particulares em residência e comércio — em menor escala após a Lei do Desarmamento, mas com a flexibilização retomará seu volume e importância.

Em um país sem controle sobre os políticos

Interesses políticos impedem que haja um controle sobre o fluxo de dinheiro: da mesma forma que a família Bolsonaro consegue comprar dezenas de imóveis com dinheiro vivo, dinheiro legal, é claro, e a facção paulista também o faz.

Regras que acompanhassem, com eficiência, o dinheiro impediriam que tanto um deputado brasileiro quanto o sobrinho de Pablo Escobar em Barueri tivessem o trabalho de ter que ventilar seu apartamento para não embolorar as notas.

… é impossível olharmos para o tráfico de armas sem encontrarmos a participação da figura do Estado em alguma das etapas de sua cadeia de atividades.

A infraestrutura de distribuição do Primeiro Comando da Capital se soma aos interesses políticos em um menor controle na circulação de armas e dinheiro vivo (agora com notas de 200 Reais) e a criação de entraves para o funcionamento dos mecanismos federais de controle de atividades financeiras.

Long life the king!
Who shall we now turn to, when our leaders lost their heart?
Bolsonaro, lives are lost, but at what cost? Will your big dream fall?

A Paz da quebrada — saudades do Jardim Marli

O garoto de Sorocaba pegou a arma do mocó em um momento em que não se encontram armas com facilidade para substituir, se bem que o preço no mercado ilegal é mais baixo do que no legal.

A mão invisível de Adam Smith sumiu com as armas das ruas, mas seu valor de venda não subiu, pois o risco de tê-las e as altas penas impostas para quem for pego com elas desestimularam a busca pelo produto, confirmando a eficácia da teoria smithiana de mercado.

No imaginário popular, os integrantes do PCC estão montados em armas, mas não é bem assim: elas estão pulverizadas ou sob o controle dos responsáveis pelos paióis — certa vez conheci um deles, mas foi outra história.

Há muito não vou para Sorocaba, menos ainda para o Jardim Marli. Devo a André o recordar de boas lembranças — juro que enquanto escrevo, sinto a brisa, o cheiro e paz daquela quebrada.

Autor: Ricard Wagner Rizzi

O problema do mundo online, porém, é que aqui, assim como ninguém sabe que você é um cachorro, não dá para sacar se a pessoa do outro lado é do PCC. Na rede, quase nada do que parece, é. Uma senhorinha indefesa pode ser combatente de scammers; seu fã no Facebook pode ser um robô; e, como é o caso da página em questão, um aparente editor de site de facção pode se tratar de Rícard Wagner Rizzi... (site motherboard.vice.com)

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