O cangaço de Lampião e Marcola do PCC

Muitos dizem que o cangaço e as facções criminosas são, antes de mais nada, um fenômeno social. Seria o Primeiro Comando da Capital de hoje o cangaço do passado?

O Novo Cangaço — um grupo ou uma modalidade criminosa?

No Brasil, o Novo Cangaço é uma modalidade criminosa que descreve a ação na qual grupos do crime organizado dominam apenas pelo tempo de duração de um ataque planejado em uma região delimitada — um tipo secular de crime, no entanto, o Primeiro Comando da Capital (facção PCC 1533) profissionalizou os procedimentos.

Autoridades do Paraguai e da Argentina discutem estratégias para se contrapor aos ataques do Novo Cangaço e vejo tanto a imprensa e quanto autoridades utilizando o termo “Novo Cangaço” para designar uma facção criminosa como se fosse um nome próprio:

O grupo Novo Cangaço se junta ao Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Bala na Cara e outros que desembarcaram na fronteira e fincaram raízes em nosso território.

Prensa Mercosur

Não descarto que possa haver algum grupo que tenha se apropriado do nome, no entanto, o importante é estudar o fenômeno em si, como demonstra a morte de diversos membros das forças de segurança e a prisão de um número cada vez maior de profissionais do crime que se especializaram nessa modalidade criminosa.

O Primeiro Comando da Capital já possui em território paraguaio 700 integrantes conhecidos pelas autoridades e suas ações tem se concentrado nas províncias paraguaia e argentina próximas à fronteira com o Brasil.

O criminologista Juan Martens ressalta para o Prensa Mercosur que “Infelizmente, os policiais continuarão morrendo nas mãos de criminosos, enquanto não houver um sistema institucional que os proteja”.

Devido ao planejamento, a sofisticação na execução, aos contatos dentro das forças de segurança pública e privada, e o alto investimento envolvido é impossível os agentes de rua reagirem com eficácia aos ataques, e sua coerção só é possível através de um sofisticado processo de investigação com respaldo em legislação específica — o que pode contrariar interesses políticos.

Quando chegavam, eles chegavam em uma comunidade, aqueles jovens, aqueles adolescentes, sem nenhuma perspectiva de vida, que muitas vezes não tinham nem o que comer, viam aquele bando de homens com armas e roupas imponentes.

Aquela visão impressionava, e muitos desses garotos passavam a desejar para si aquela vida para poder ter esse mesmo tipo de acesso a coisas que eles jamais teriam.

Esse trecho do “Temacast Lampião” poderia estar se referindo tanto ao bando de Lampião quanto a um grupo de criminosos de hoje nas favelas e comunidades carentes brasileiras e agora ultrapassam a fronteira em direção ao Paraguai e a Argentina:

O Temacast, o cangaço e a facção PCC 1533

O Primeiro Comando da Capital é fruto de nosso tempo, mas não tem como não notar as semelhanças entre esse fenômeno criminal e a era de ouro do cangaço ao ouvir o podcast “Lampião”, do canal Temacast.

Lampião (…) cria um próprio poder paralelo, por isso que comparam a ele com os traficantes atuais, por que não existe ausência de poder (…) onde o governo não chega, alguém vai ocupar aquela lacuna, é a chamada ausência do poder legal. O crime exerce o poder por que o Estado não fez antes dele.

Leia este texto, que é uma transcrição de parágrafos inteiros (como o acima), Em alguns deles, substituo a palavra “cangaço” pelo termo “facção criminosa”, e a descrição do passado se encaixa como uma luva para os dias de hoje, mas, se preferir, ouça você mesmo o bate-papo entre os acadêmicos Francisco Seixas, Larissa Abreu, Igor Alcantara e Fabrício Soares: Temacast

O cangaço, as milícias e o PCC 1533

Facções criminosas: milicianas e criminosas

Hoje não há uma clara diferença entre os facciosos oriundos do mundo do crime e aqueles que vieram das milícias, no entanto os milicianos se originaram da mesma forma que os antigos cangaceiros do nordeste.

Os primeiros milicianos tiveram sua origem como meros “prestadores de serviço”, aí o termo prestadores de serviço tem que ficar entre aspas, porque eles prestavam serviços de jagunços para os chefes políticos locais e pequenos empresários das comunidades.

Na década de 1970 e início da de 1980 outros grupos de extermínio agiam por todo o país. Os “mãos brancas” eram grupos de justiceiros compostos por policiais civis e militares que mataram, durante duas décadas, milhares de pessoas.

“Acho que elas são piores do que as facções. No caso da facção fica muito claro quem é o bandido e quem o mocinho, a milícia transita entre o Estado e o crime, o que é bem pior.”

desembargadora Ivana David
faces controle social tráfico cangaço pol[icia

A finalidade social das facções criminosas

Por outro lado, as grandes organizações criminosas brasileiras cuja origem se deu no mundo do crime, como o Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital e Família do Norte, tiveram sua célula mater na antiga Falange Vermelha (FV), do Rio de Janeiro.

Os primeiros grupos facciosos de que se tem relato eram, na verdade, meros grupos de presos que visavam apenas se autoproteger dentro das muralhas do sistema carcerário, mas que passaram a atuar fora das celas, inicialmente em suas próprias comunidades.

Conta-se que já em 1840, em Feira de Santana, na Bahia, havia um cangaceiro chamado Lucas da Feira, que tinha uma maneira de agir muito parecida com a de Robin Hood: ele fazia os saques e distribuía parte do butim para a comunidade carente.

José Carlos Gregório, o Gordo da Falange Vermelha, afirma que repartir parte dos roubos e do tráfico também era uma das bases da ética criminosa da FV e que isso acabou sendo incorporado por outras facções, como o PCC e o CV.

Assim como o cangaceiro Lucas da Feira, os facciosos faziam uso de extrema violência e crueldade para garantir o sucesso de suas ações, contudo eram aceitos com certa naturalidade e até com boa vontade dentro de suas bases territoriais.

Marcola do PCC Marcos Willians Herbas Camacho

O Lampião de ontem, o Marcola de hoje, e o antagonista de amanhã

Da forma com que a imprensa e a história apresentam Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, tem-se a impressão que ambos foram fundadores dos movimentos que representam: facções criminosas e cangaço.

O Marcola era homicida, sequestrador, roubava banco, não tinha nada a ver com a facção, mas é um homem articulado. E quando ele foi levado para o presídio de Tremembé [no interior de SP] começa a conversar com os últimos presos políticos no sistema prisional e aprende com eles sobre como estruturar o tráfico, a gerenciar como uma empresa, ao mesmo tempo em que vende internamente para os detentos a ideia de uma irmandade revolucionária.

desembargadora Ivana David

No entanto, foram apenas frutos de um processo que os antecederam em décadas.

Creio que você, assim como eu, não possui uma bola de cristal que possa lhe dizer como o futuro há de julgar Marcola do PCC, mas, se me basear no passado, em Lampião, posso afirmar que o antagonismo se manterá vivo por muito tempo:

  • odiado, pois sob o ponto de vista da lei, Marcola é, assim  como Virgulino foi, um bandido, um criminoso sanguinário que matava e fazia negociatas sujas com políticos; e
  • amado, pois sob o ponto de vista político, Marcola é, assim como Virgulino foi, uma dessas pessoas que não aceitava o modelo oligárquico, no qual uma minoria privilegiada tem acesso aos bens de consumo e a ampla maioria da população vive disputando um espaço de sol na miséria.
o mito do cangaceiro revolucionários

Jesuíno Brilhante, Lampião e Marcola

A socióloga Camila Nunes Dias afirma que o “O PCC não é revolucionário, é uma organização conservadora e que tem valores como o machismo e o repúdio aos homossexuais”, assim como era o comportamento dos cangaceiros de Lampião.

… meninos entram para o tráfico e meninas pegam uma barriga deles. Quanto mais poderoso e rico é o menino, mas elas disputam entre si pra ver quem vai engravidar dele primeiro. Estamos falando de meninos e meninas de 16 a 20 anos.

Luiz Felipe Pondé

Jesuíno Alves de Melo Calado, o cangaceiro Jesuíno Brilhante, buscava contestar o sistema da forma como ele estava montado, ao contrário de Lampião e Marcola, que se integraram, cada um de seu jeito, ao sistema, se aliando a políticos conservadores.

“Essa visão de mocinho e bandido só existe em história infantil”

Esses ícones do Estado paralelo tiveram suas vidas esmiuçadas por dezenas de estudiosos em milhares de trabalhos acadêmicos e audiovisuais. No entanto não há consenso, alguns refletiram a visão daqueles que combateram o cangaço ou que tiveram seus antepassados mortos ou saqueados por eles; já outros, se basearam nos depoimentos do povo que convivia com eles.

Talvez nunca saberemos, afinal, se era um deus ou um diabo que reinava na terra do sol, assim como não sabemos, hoje, como serão vistos, no futuro, aqueles que reinam nas periferias, nos morros ou dentro do Sistema Prisional.

Qualquer grande líder político, militar ou religioso desperta essa reação de amor e ódio, e, se fizermos uma análise profunda, encontraremos grandes razões para amá-los e odiá-los ― não foi diferente com Lampião e Jesuíno Brilhante, e não será diferente com Marcola.

brincando de segurança pública pcc 1533

O Estado como controlador da violência

Lampião comandou seu homens com pouca resistência no período que sucedeu a Proclamação da República, em 1888, e Marcola viu o fortalecimento de sua organização após a derrubada do Regime Militar e com a Promulgação da Constituição Cidadã de 1988.

Espécies nocivas que frequentam o ambiente se proliferam com rapidez pela falta de predadores naturais, e assim o cangaço e as facções criminosas se fortaleceram na ausência do Estado nos presídios, nas periferias e no sertão nordestino.

Assim como no passado, o medo impera naqueles que comandam os diversos níveis de poder mas não temem a criminalidade tanto quanto temem a eles mesmos:

Os fazendeiros e políticos locais do século XIX e o governo federal temiam a política dos governadores. Um século e meio após, se um candidato à presidência propor a federalização ou a municipalização da segurança pública ― os governadores pirariam!

Dentro dessa realidade, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) não consegue ser implementado deixando uma via aberta e bem pavimentada para as organizações criminosas enquanto os diversos entes federativos lutam pelo poder.

Getúlio Vargas subindo o morro

Getúlio Vargas para acabar com o PCC?

Até hoje, não há dados confiáveis sobre as questões de Segurança Pública. Cada estado é responsável pelo cadastramento de seus cidadãos e dos criminosos, através da emissão de documentos, e estes não estão disponíveis em tempo real.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não aposta em um novo salvador da pátria e explica suas razões:

Os estados sempre quiseram cuidar das forças de segurança, até a Constituição de Cidadã de 1988 as polícias militares respondiam diretamente às Forças Armadas, mas nós, democratas, lutamos para retirar dos militares esse poder.

A Segurança Pública deve ser gerida pelos estados, os estados nunca aceitaram intervenção porque a polícia é um espaço de poder. O exército não está preparado para enfrentar inimigos urbanos, ele é feito para defender o Brasil de possíveis inimigos externos.

Contra inimigos externos você não conversa, você atira e não é isso que vai acontecer em uma favela. O exército ficou na Favela da Maré um ano e não deu nada, subia tanque do exército na favela e a sociedade ficava acreditando.

No passado também foi assim, pelo menos até que chegou o cara, o salvador da pátria! Getúlio Vargas derruba o poder dos governadores e dos senhores locais e encerra a era de ouro do cangaço.

Talvez apareça um novo messias para nos salvar, talvez o Sistema Único de Segurança Pública dê mais um passo em seu lento deslocamento em direção ao aperfeiçoamento, ou talvez deixemos como está para ver como é que fica.

Pedro Rodrigues da Silva, o Pedrinho Matador, conhece o sistema prisional de São Paulo como poucos. Ele ficou sem ver a rua de 1973 até 2007 e de 2011 até 2018 — viveu mais de 40 atrás das grades e por lá, ele conta que viu mais de 200 presos serem mortos enquanto esteve por lá, sendo que mais de 100 foram ele mesmo que matou.

Viveu no cárcere no tempo do Regime Militar, da redemocratização e dos governos com leve viés progressista, mas mudança mesmo, houve quando a facção paulista despontou como hegemônica, acabando com as diversas gangs e grupos dentro das cadeias e presídios.

Sobre o Primeiro Comando da Capital ele afirmou durante uma entrevista:

“Fui [convidado a entrar no PCC], mas não entrei. Ali é o seguinte: depois que surgiu o partido, você vê que a cadeia mudou. Não morre ninguém porque o partido não deixa. É paz. Paz para a Justiça ver. Se começa uma briga, eles seguram. Eles também ajudam quem sai, arrumam trabalho.”

transcrito por Willian Helal Filho para O Globo

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