O certo pelo certo, o errado será cobrado!
Estava com meu sobrinho no McDonald’s da avenida marginal quando aquela mulher se sentou com o garoto na mesa ao lado da qual eu estava. Eu já havia encontrado com aqueles dois no shopping há poucas horas.
Uma hora antes, no shopping, eu havia deixado meu sobrinho no espaço de jogos e quando retornei ele estava chutando violentamente o garoto que estava com aquela mulher. Peguei-o pelo cangote e o levei para fora, mas, inconformado, ele não parava de dizer:
O certo pelo certo, o errado será cobrado!
Não sou de puxar muito assunto, para mim a história acabou alí, afinal, o garoto era maior do que meu sobrinho, então não foi covardia, e cada um com seus problemas.
Ao sair, vi que a mãe do garoto olhava com cara de espanto e medo em nossa direção. Foi o fim do passeio, saímos de lá direto para o estacionamento.
No caminho de casa paramos para tomar um lanche naquele McDonald’s. Coincidentemente, chegam logo depois ela e o garoto. De certo não nos viram ou teriam desviado ou, se pá, ela teria vindo tomar satisfação – melhor que não tenha vindo.

Garotos irritantes e moleques zikas
Não perguntei ao meu sobrinho o motivo da zica que teve com o garoto, mas tenho certeza que ele teve suas razões – aquela amostra de playboyzinho era irritante, e o moleque não era de levar desaforo para casa.
Aí me veio uma dúvida: no que o papai dele trabalha? Quem sabe não poderia me render um trabalho, afinal, eu estava meio de bobeira mesmo…
… mas se essa não é narrativa de atividade, então vamos voltar ao assunto: estou aqui para falar de Isabelle, que naquele momento estava a três mil quilômetros daquele McDonald’s.
Se você for de Fortaleza talvez você conheça Isabelle, mas eu só a conheci por meio de seus artigos no Canal Ciências Criminais, até que, há alguns dias, tropecei em um artigo escrito por ela e publicado na Revista Diálogos Acadêmicos:
“Análise do discurso à luz da subcultura criminal: Primeiro Comando da Capital”.
Isabelle Lucena Lavor, com aquele artigo, me trouxe luz para o comportamento tanto do meu sobrinho quanto daquele garoto irritante e o meio em que ambos estavam sendo criados.

A subcultura criminal e o lado errado da vida
Criticam-me por dizer que existe uma cultura do PCC ou uma cultura criminal; já Isabelle afirma que há subcultura criminal – será que ela também é criticada por isso?
Sempre me orgulhei do meu sobrinho, que é nossa cara: o garoto é zica.
Antigamente achava que era algo hereditário, mas depois percebi que os moleques do bairro também acabavam ficando nossa cara, mesmo não sendo da nossa família de sangue.
Os moleques se fazem homens dentro de nossa cultura – não me critique se digo “homens”, pois a mulher PCC tem seu lugar dentro da cultura criminosa, e se tiver alguma dúvida qual ela seja, pergunte a Camila Nunes Dias, que poderá lhe explicar melhor que eu.
Luiz Felipe Pondé
Para os garotos da comunidade conquistarem espaço nas escolas, nas ruas e no mercado de trabalho é preciso se impor e viver dentro das normas do mundo do crime – mesmo que nunca tenham se envolvido com ele.
O uso da força por vezes é necessário para legitimar sua posição perante a sociedade e seus pares, afinal, não será com doces palavras que conseguirão sucesso, mas sim com inteligência, estratégia e, quando necessário, com a quebra de normas sociais.
Quebrando normas sem temer punição
Meu sobrinho sabia que não sofreria retaliação por ter chutado o garoto, assim como aquele garoto mimado imaginou que estava acima das regras por estar no shopping.

A hipocrisia do Estado e a ética do crime
A ética do crime me parece ser menos hipócrita do que a estudada nos cursos de direito, apresentada pela mídia ou ensinada nas escolas. Nas quebradas, o que é certo e o que é errado é analisado caso a caso dentro do código de conduta da facção.
Me procuram para perguntar se uma atitude pode ser cobrada ou não dentro das regras do PCC, e eu sempre respondo que não sei. Cada caso é analisado pelo disciplina – não há duas histórias e dois contextos exatamente iguais.
Meu sobrinho sabia que estaria sujeito à avaliação da conduta e à pena por agir errado, e por isso tinha eu certeza que ele não teria se arriscado a dar um pau naquele garoto sem ter certeza de estar correndo pelo certo.
As regras existem para servir à comunidade, e não para que as pessoas a sirvam.
- Não usar drogas na frente de crianças;
- Motoqueiros: andar devagar pelas ruas;
- Não escutar som alto tarde da noite;
- O sossego da população é primordial;
- Não roubar na comunidade, em respeito ao cidadão de bem;
- Respeitar todos os moradores;
- Não aceitamos talaricagem;
- União e respeito uns com os outros.
A facção Primeiro Comando da Capital tem suas regras de conduta delineadas em três pilares:
- Estatuto da facção Primeiro Comando da Capital;
- Dicionário do PCC; e
- Cartilha de conscientização da Família 1533.

Análise social na aplicação da Justiça
Como cada caso é estudado levando em conta suas peculiaridades para que o Tribunal do Crime não caia no descrédito da comunidade:
Segundo Raymundo Juliano Feitosa cobrança mais cruel pelo Código Penal do PCC é o chamado xeque-mate: esquartejamento do infrator enquanto ele ainda está vivo, e só depois ele é morto e todo esculacho é filmado e jogado nas redes – essa condenação é aplicada aos estupradores e pedófilos, também, tem por finalidade servir de exemplo para outros que teriam interesse em fazer o mesmo.
Se por um lado os Tribunais do Crime fazem essa análise, a Justiça do Estado Constituído puni sem qualquer análise social, cumprindo as frias letras e ritos do direito penal.
Aquele garoto mimado no Shopping caiu no conto da segurança pública…
A realidade é bem diferente do que está no papel. Meu sobrinho poderia ser punido, só que não; embora, apesar de eu não saber o que aquele garoto tenha feito, tive certeza que ele foi de fato punido.
Bem-vindo ao mundo real garoto.

O Estado de Direito, as asas da galinha e o lobo
Meu sobrinho, apesar de ser apenas um garoto, já havia interiorizado que a justiça deveria ser justa, correta: “o certo pelo certo, e o errado será cobrado”. E, apesar da pouca idade, já não estava nem aí para as normas de conduta da sociedade constituída.
Ali, no McDonald’s, vendo aquela mulher e o garoto, percebi a diferença que havia entre eles e os moleques da comunidade que estavam sob o jugo pesado de leis que foram feitas para sua penalização, sem se preocupar com eles enquanto pessoas.
O Estado guardava aquela mãe, seu filho e seu patrimônio, assim como uma galinha guarda os seus pintos debaixo das asas, só que lobos não temem galinhas, e essa proteção simbólica não tem eficácia instrumental como meio de prevenção ao delito.
O que o Estado e a sociedade conseguem quando insistem em sua soberba, ao arrotarem um poder que não dispõem de fato, é conquistar a desconfiança e o ódio por parte daqueles que estão alijados de um lugar sob a asa da galinha.

Cultura do mundo crime ou subcultura mundo crime?
Graças a Isabelle, conheci Albert Kircidel Cohen, que em meados do século passado já havia diagnosticado esse fenômeno social em seu livro “Delinquent Boys”.
Moleque que mora na quebrada só conhece a bota do Estado, que quando chega na sua comunidade é para se impor pela força ou extorquir os garotos e os gerentes do corre.
Essa garotada entende a linguagem usada na confecção do Estatuto do PCC e do Dicionário do PCC e se identifica com o personagem criado e com os ideias apontados pelos seus idealizadores.
Meu sobrinho, assim como muitos daqueles que conheço, passaram “a aceitar a violência como um modo normal de resolver” seus problemas, sem mimimis e sem a tutela do Estado, seja na escola, no shopping ou nas ruas.
O moleque não se acha acima da lei, mas segue as regras de conduta assimiladas no seu convívio social e consolidadas nos documentos regulatórios escritos ou não da facção Primeiro Comando da Capital.
Esse fenômeno não é uma característica de nosso tempo, nação ou contexto político, apesar de muitos acreditarem que é uma consequência da civilização pós-moderna globalizada.

Aprendendo a relativizar as regras sociais
Meu sobrinho não havia interiorizado aqueles valores no aconchego de seu lar. Seus pais sempre foram trabalhadores esforçados e evangélicos fervorosos, mas uma criança não aprende apenas com seu papai e sua mamãe.
Aquelas crianças que jogam futebol, estudam na mesma escola, empinam pipa e jogam conversa fora por horas com meu sobrinho nasceram e cresceram naquela comunidade, filhos de gente boa e de gente ruim, mas todos vizinhos há décadas.
Quem sabe não foi com eles que meu sobrinho aprendeu e também ajudou a transmitir para as novas gerações essa ética do crime, a lei do “certo pelo certo”, mesmo que esta se contraponha em parte às normas legais ou de conduta do restante da sociedade.
Relativizando uma cultura geral
Ele, assim como os outros moleques da quebrada, os filhos dos policiais do patrulhamento assim como o daquela mulher do McDonald’s são criados e estão imersos na mesma cultura geral da sociedade judaico-cristã, mas imersos em diversas subculturas com as quais interagem.
“[Podemos] considerar o crime como um comportamento aprendido a partir do grupo direto em que o indivíduo se encontra, com quem estabelece relações sociais mais próximas”
Edwin Sutherland
Nossos núcleos familiares e sociais tem como base cultural os mesmos costumes, crenças, conceitos, preconceitos, códigos morais e jurídicos, no entanto, apenas alguns núcleos relativizam, ressignificam ou se contrapõem a pontos importantes da regra geral.
Aqueles que participam desses de oposição parcial às normas gerais são os doutrinados na subcultura do crime, e esses grupos não estão apenas nas periferias ou na contemporaneidade, como comprovou Alber.

Receita para formar um “delinquent boy”
Meu sobrinho nada havia me dito sobre o que aconteceu no espaço de jogos do shopping, mas vendo agora quem era o pai do outro garoto tive quase certeza de que este havia tentado levar alguma vantagem indevida – daí os chutes.
Alguns grupos sociais consideram possível quebrar as regras impunemente, cada um dentro um espectro da cultura criminal:
Alguém que nunca venderia uma parada de maconha, sem pensar duas vezes, pode sonegar impostos, ou o contrário – cada um justificando que o crime alheio é mais danoso e o seu socialmente aceitável.
Não somos todos iguais, mas nossa natureza não muda, independentemente do poder econômico, político, físico ou cultural, pelo menos é o que afirma Edwin e Isabelle.
Olhei para meu sobrinho e para aquele garoto irritante e acredito que, se o pesquisador americano estiver com razão, no futuro aqueles moleques vão fazer negócios juntos, pois para que um indivíduo tenha tendências a quebrar regras são necessários quatro fatores:
E depois que vi quem era o pai daquele garoto irritante e conhecendo o ambiente em que meu sobrinho está sendo criado, posso afirmar que não faltará a eles nenhum desses pontos – pelo contrário, eles vão aparecer em abundância.

Convivendo com os que bebem o vinho da violência
Como se desviar da vereda dos ímpios quando se vive nela e é visto que os únicos que conseguem deixar esse ambiente são aqueles que possuem melhores condições econômicas justamente porque andam pelo caminho dos maus?
Edwin Sutherland tinha razão ao afirmar que “a criminalidade perpassa por toda a escala social” e que “há tanto delito de pobres como de ricos e poderosos” – e ali estava, na minha frente, a prova disso.
Talvez o moleque e o garoto irritante venham a ter sucesso em suas carreiras profissionais. A exigência de sucesso em nossa sociedade é evidente e perpassa todas as camadas sociais; mas talvez não, e eles busquem um atalho.
Ambos, cada um de uma forma diferente, conhecem e convivem em seus respectivos meios familiares ou sociais, e a quebra de regras desses meios poderá possibilitar um dia que o caminho para o sucesso seja encontrado mais rapidamente.
Terão interesse e escolherão abandonar a cultura criminal que se entranhada em suas almas cotidianamente? Esperarão por anos resultados que podem conseguir em dias? Bem, esse é um problema que não me cabe e não me interessa…
… mas até que estou curioso se eu ou você não fazemos parte de algum desses grupos de subcultura criminal – possivelmente responderemos que a nenhum. Aqueles que pertencem a um grupo não reconhecem como quebra da norma o que outros consideram.

Deus é pai, não é padrasto. Conheço o pai do garoto.
Ainda estava no McDonald’s quando o pai daquele garoto irritante chegou e se reuniu com a família – coisas da vida, eu já havia feito negócios com aquele homem em certa oportunidade, mas isso não vem ao caso.
Creio que o garoto seguirá o caminho do pai, e se assim o for, quem sabe no futuro não venha a fazer negócios com meu sobrinho e darem juntos boas risadas daquele incidente no shopping.
Há muito terminamos nossos lanches. Meu sobrinho ficou entretido no celular e eu me perdi nos pensamentos. A família na mesa ao lado conversa sem imaginar meus pensamentos – melhor assim.
Como de costume peguei no braço do moleque, que levantou de imediato. Gosto disso, sem muito diálogo, papo reto sem curvas. Quando chegamos no carro, o pai do garoto irritante veio até mim. O moleque entrou no carro enquanto ele me passou um papel.
Acertado com o fiteiro, a vida continua, bora juntar a quadrilha para a correria.
Olá, fico muito feliz em saber que lê os meus textos! Achei o seu bem interessante! Abraço.
Att, Isabelle.
Eu é que fico honrado em saber que considerou interessante a vereda pela qual conduzi algumas das ideias que me foram passadas por ti.
Olá, fico muito feliz em saber que ler os meus textos! Achei o seu bem interessante! Abraço.
Att, Isabelle.