Há que se ter em mente que, em matéria penal, é essencial pautar-se pela procura constante do garantismo penal, evitando-se a insegurança jurídica, a temeridade de interpretações extensivas ou mesmo julgamentos ideológicos, podendo-se nesse contexto buscar amparo nos conhecimentos de Cesare Beccaria, entendendo o autor que, “veríamos, desse modo, a sorte de um cidadão mudar de face ao transferir-se para outro tribunal, e a vida dos desgraçados estaria à mercê de um errôneo raciocínio, ou da bile de um juiz.” 1
Daí a importância do princípio retro citado, que permite minimizar o poder discricionário do julgador, já que esta autonomia, quando em excesso, pode ocasionar sérios prejuízos ao destinatário final da norma penal: o acusado. Além disso, não se deve ignorar que o juiz, muito antes da condição de magistrado, nada mais é que um cidadão com formação político-ideológica, não podendo suas decisões refletir seu posicionamento pessoal frente à sociedade. Ele deve pautar-se pelo espírito da lei aplicável ao caso concreto, isentando-se de preconceitos ou opiniões individuais, sendo-lhe ainda vedada na esfera penal a presunção ou a analogia em suas decisões. Ressalte-se, também, a importância de o legislador que, quando da elaboração da norma, pretendia estancar quaisquer possibilidades de interpretações temerárias ou extensivas, sendo a busca do garantismo penal a forma mais justa diante do histórico brasileiro como jovem democracia.
Apesar da redundância, cabe aqui repetir que, em alguns casos de matéria civil, o aplicador do Direito detém a prerrogativa de decidir segundo o seu convencimento, acontecendo de, em certas situações, a decisão ser até mesmo contrária às provas de que dispõe, sem, no entanto, tornar a decisão injusta. Sobre a interpretação jurídica, Dimitri Dimoulis 2 oferece de forma apropriada o seguinte exemplo: ao se ler um poema, a interpretação “pode ser fiel ao texto ou ‘livre’.”; não há problema se algum especialista considerar a interpretação do poeta totalmente equivocada, já que tal ponderação não ocasiona prejuízos a qualquer agente social.
Todavia, uma interpretação equivocada na seara jurídica pode incidir em significativa lesão, especialmente em matéria penal, quando o bem envolvido é a liberdade; as decisões neste âmbito do Direito determinam se uma pessoa será absolvida ou condenada, bem como qual será a dosagem da pena e o regime a ser cumprido. As diferentes formas de se interpretar a lei penal, causadas inúmeras vezes pela má redação da norma ou pelo excesso de discricionariedade à disposição do aplicador da pena, gera em várias situações decisões conflitantes e divergentes, como as que têm ocorrido com a Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei Nacional de Políticas sobre Drogas). 3
Diante do exposto até o momento, possível se torna detectar a existência de um bizarro paradoxo envolvendo o assunto, pois não existe definição própria do que vem a ser o delito de crime organizado, mas pune-se em razão do mesmo, contrariando-se dispositivos legais e constitucionais; isso propicia o surgimento de terreno fértil ao aparecimento de um precedente perigoso que coloca em risco a segurança jurídica e abre a possibilidade para interpretações diversas, sendo certo que, em matéria penal, há que se ter certos “freios” para obstar decisões diversas sobre o mesmo fato.
Existem alternativas para a problemática, mas que não atendem totalmente a busca da definição exata do tipo; isso porque a legislação pátria, por meio de seu Código Penal, possui dispositivos que já prevê punição para atividades como formação de quadrilha ou bando, sendo tal ilícito o que mais se aproxima hoje do denominado “crime organizado”, que vem sendo interpretado como um delito autônomo.
Este texto é um trecho da Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP, do Dr. Gerciel Gerson de Lima, sob orientação da Professora Doutora Ana Lúcia Sabadell da Silva do Núcleo de Estudos de Direitos Fundamentais e da Cidadania em 2009 – SISTEMA PRISIONAL PAULISTA E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS: A PROBLEMÁTICA DO PCC – PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL.
- BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1978. p.102.
- DIMOULIS Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.56.
- Nos crimes envolvendo o tráfico de entorpecentes, esta Lei (11.343/2006), no §4º de seu artigo 33, prescreve que as penas poderão ser reduzidas de um 1/6 a 2/3, desde que o agente esteja na condição de réu primário, possua bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas e nem integre organização criminosa. Entretanto, tal benefício aos que preenchem estes requisitos vem sendo motivo de decisões divergentes e exemplo disso pode ser conferido na 1ª Vara Criminal de Itu/SP, onde a magistrada não concede nem o mínimo do benefício previsto, entendendo a norma como sendo inconstitucional; o juiz da 2ª Vara Criminal concede 1/6 de redução e, após apelação, teve uma de suas decisões reformada pelo TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que concedeu 2/3 de redução. Na comarca de Sorocaba/SP alguns juizes concedem redução de 2/3 e outros magistrados optam por 1/3, fazendo com que procurador e acusado já tenham, antes da sentença, certa previsão da dosagem da pena. No entendimento deste autor o equívoco está no verbo poderão, que confere significativa discricionariedade aos aplicadores do Direito e gera essa insegurança quanto a dosagem da pena.